“Dar o troco” deveria significar sempre retribuir um belo gesto com outro belo gesto.
Como professora de educação infantil, aprendi a recontar histórias feitas para crianças, e de qualquer idade. Porém, preferi por aqui reapresentar crônica de Tatiana Belinky (para ler, ir rolando até lá embaixo), pela singeleza natural desta escritora que, no alto de seus 90 anos, testemunha-nos que dentro dela continua vivinha a criança que foi e a faz se aproximar de crianças e jovens.
E por aqui penso naquele ou naquela que não gosta de criança ou que nunca gostou de brincar. Se professor ou professora tem pouca chance de conviver com as muitas crianças ou jovens que estão nas escolas. Para aprender com elas é preciso sensibilidade e identificação com a profissão.
Você também pensa assim?
Fico mesmo muito feliz com o assentir e as ressonâncias que me chegam de fadas, elfos, nereidas, gnomos junto às tantas magias infantis achegadas e a corporificar hoje corpos adultos.
Como o diálogo das aprendências pode acontecer?
Tatiana ajeita palavras sábias a respeito de que as “crianças são incrivelmente inteligentes desde muito novas. Elas são como pequenos gravadores. Absorvem tudo o que está a sua volta. Uma vez uma professora me perguntou porque as crianças não gostam de estudar. É simples. Criança não gosta de estudar, gosta de apreender, ler o mundo. Elas têm uma lógica irrefutável e são muito atentas”.
É preciso respeitar a infância, resgatando o significado da imaginação e da curiosidade infantil. Um conto sempre surpreende seus leitores ou ouvintes. A pureza de coração é inseparável da simplicidade e da humildade. Nada nos surpreende mais que a ética, a solidariedade, a tolerância, a bondade em mundo de competitividade voraz e desenfreada, onde as pessoas estão apressadas, pouco tempo se reserva para uma boa conversa, mesmo em casa, onde se anseia por mais aproximação e cooperação entre as pessoas.
- Como faremos um mundo mais feliz sem incorporarmos a alma de uma criança? Com ela nos religamos à vida.
Pedagogia retrógrada é aquela que segue na contramão do que Bachelard (1988) nos inspira sobre o respeito à criança, porque “horas há, na infância, em que toda criança é o ser admirável, o ser que realiza a admiração do ser”. Com Richter (2004), nos reconstruímos cada vez mais por “considerar a criança como sujeito ativo e capaz (...) O seu poder de imaginar vai muito além das palavras ao alcançar outros sentidos e significados não verbalizáveis de sua experiência. Respeitar a especificidade do seu momento de vida infantil significa preservar seu modo poético de abarcar o vivido, sua maneira imediata e lúdica de enfrentar o mundo e a si mesmo. Implica considerar pedagogicamente o modo singular de cada criança no seu encontro com o mundo, maravilhando-se ou horrorizando-se, criando e inventando significados que ultrapassam o sentido único, no desafio de conhecer a si próprio no ato de imaginar, interpretar e constituir realidades”.
Brincadeira é coisa séria e importante para nos constituir seres humanos amáveis e integrados ao meio. A etimologia da palavra escola é alegria. E as alegrias são culturais e aprendentes. É a ecologia da vida.
Um conto provoca reconto, desenho, teatro, música, jogo, pesquisa e outras escritas. "O troco" é bela crônica de Tatiana... a mexer com nossa dignidade amorosa.
“Na esquina da Sete de Abril com a Bráulio Gomes, o cafezinho era ótimo, e eu não deixava de saboreá-lo sempre que andava nas proximidades. Naquela tarde, lá estava eu, como de costume, esperando no balcão pelo meu puro-sem-açúcar, quando reparei no garoto parado do lado de fora. Teria uns doze anos, e a roupa surrada, grande demais, sobrava no seu corpo magrinho. Seus olhos escuros e tristes passavam de um freguês para outro, até que se detiveram em mim. Ele aproximou-se timidamente e disse baixinho:
- A senhora podia me comprar um sanduíche?
Eu até lhe compraria o sanduíche, mas aquele lugar era um balcão de bar, não uma sanduicheria!
- Sinto muito, aqui não vendem sanduíches, menino – falei.
- Sinto muito, aqui não vendem sanduíches, menino – falei.
Mas o garoto retrucou de pronto:
- Eu sei, mas tem lá na frente! – E indicou uma lanchonete do outro lado da rua, na esquina da Marconi.
- Espere um momento – falei e abri a bolsa à procura de uns trocados para o tal sanduíche, que devia custar dois ou três cruzeiros (o cruzeiro era a moeda brasileira até 1994, quando foi substituído pelo real). Só que a menor nota que encontrei na carteira era uma grandinha, de cinqüenta cruzeiros; muito mais que o necessário. Mas o garoto era tão subnutrido, tinha uma carinha tão triste, que lhe estendi a nota de cinquenta, pensando: “Ele bem que precisa, isto lhe dará para muitos sanduíches, bom proveito!”. E voltei-me para o cafezinho que acabava de chegar, já esquecida do menino que saíra correndo, sem mesmo um “muito obrigado”.
O cafezinho estava bom, bem quente, e eu, degustando-o devagarinho, ainda estava no meio da xícara, quando de repente aquele menino surgiu diante de mim, com o sanduíche numa mão e algumas notas de dinheiro na outra, que ele me estendeu, muito sério:
- O seu troco, dona!
E como eu ficasse parada, sem reagir – de surpresa -, ele meteu o dinheiro na minha mão, resoluto, e então sorriu:
- Muito obrigado!
E foi-se embora, rápido, antes que eu pudesse dizer-lhe “fique com o troco”, como era a minha vontade.
É verdade que eu podia ter ido atrás dele, podia tê-lo chamado, mas algo me disse, lá no meu íntimo, que eu não devia fazer isso. Devia mais era aceitar a dignidade com que aquela criança pobre não abusou do meu gesto, que, evidentemente, entendeu não como uma esmola, mas como uma prova de confiança na sua correção...".
É verdade que eu podia ter ido atrás dele, podia tê-lo chamado, mas algo me disse, lá no meu íntimo, que eu não devia fazer isso. Devia mais era aceitar a dignidade com que aquela criança pobre não abusou do meu gesto, que, evidentemente, entendeu não como uma esmola, mas como uma prova de confiança na sua correção...".
Somos divinamente humanos.
Falar de afetividade, bullying e paz na escola é nos dar nova oportunidade de sermos mais felizes com os alunos e com a comunidade. Faz parte das aprendências!
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. (p. 111)
BELINKY, Tatiana. Onde já se viu? 5ª. reimp. São Paulo: Ática, 2008. (p. 28-29)
RICHTER, Sandra. Criança e pintura: ação e paixão de conhecer. Porto Alegre: Mediação, 2004. (p.32).
É nisso que eu acredito!
ResponderExcluirIsabelle,
ResponderExcluirQuanto prazer compartilhar das mesmas ideias com alguém tão sensível, criativa e humana como Você. A escola só tem a ganhar com o trabalho que desenvolve com alunos e alunas.
Desconstruíram bastante, segundo testemunhos. Somos co-aprendentes!
Abraços!