Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem
de barriga no chão
de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
O quintal, de Paulo Freire (A importância do ato de ler)
[Por aqui ousei manejar palavras de Freire]
O quintal como primeiro mundo. Qualidade de vida. Onde ali especialmente expandia sua atividade perceptiva. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto multiplicaram a compreensão e as relações humanas.
Aqueles “textos”, “palavras”, “letras” impregnavam-se do canto dos pássaros. Nas danças das copas das árvores reliam-se tempestades, trovões, relâmpagos e por lá até as águas da chuva faziam-no brincar de geografia, a reinventar lagos, ilhas, rios, riachos.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” encarnavam-se no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas cores do lugar e do tempo, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores - de rosas ou jasmins, no corpo das árvores ou na casca dos frutos.
Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o seu gosto.
Por lá conviviam os animais - os gatos da família; o mau-humor do velho cachorro negro do pai e o sumiço de gordas galinhas da avó. Naquele contexto, o universo da linguagem dos mais velhos, crenças, gostos, receios, valores enredava-se a contextos mais amplos. Coisas de língua materna sustentável.
Em ricas experiências de compreensão do mundo imediato, recombinando bemquerenças e malquerenças ressignificando sentimentos característicos do nosso século, competitivo e bem pouco cooperativo, as (re)leituras ali cultivadas fluíam. Até por que foi lá no chão do quintal de sua casa, e bem à sombra das mangueiras com as próprias palavras ainda tatuadas do mundo maior de seus pais é que foi alfabetizado. Paulo teve o chão como quadro-negro e gravetos como seu giz.
Entretanto, foi com Quintana que aprendi que a beleza não só encanta, ensina e faz aprender.
Com ele, crianças de todas as idades, em seus corpos relacionais, redescobrem que o quintal é o melhor lugar de "se" fazer poesia, guardar borboletas e aprender de forma integrada com a vida. Chega de escola de vidro onde borboletas ficam ali guardadas, como se fossem de papel. Como elas respiram lá dentro?
Privilegiado lugar é lá no mato, coisas e lendas do mato, dos quintais de Andrade, Freire e “Quintana”.
A margem - Matisse (1907)
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Fecha-se esse remix bricoleiro, com a sensibilidade poética de Quintana, e por três vezes:
Os Sonhos das Lagartas
As lagartas não podem acreditar
na lenda das borboletas tão antiga
entre o seu rastejante
e esforçado povo...
mas sua felicidade
consiste em relembrar, às vezes,
o absurdo e maravilha desse velho sonho:
o de se transformarem, um dia, em borboletas.
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Pequeno Poema Didático
O tempo é indivisível. Dize,
qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
contra o vento incerto e vário.
qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
contra o vento incerto e vário.
A vida é indivisível. Mesmo
a que se julga mais dispersa.
E pertence a um eterno diálogo
a mais inconseqüente conversa.
a que se julga mais dispersa.
E pertence a um eterno diálogo
a mais inconseqüente conversa.
Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!
E que venham as borboletas!
Referências
BARROS, Manoel de. O apanhador de desperdícios. In: Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. (p. IX).
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. In: A importância do ato de ler: em três textos que se completam. 3 ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983. (Coleção Polêmicas do nosso tempo.) p.11-24.
QUINTANA, Mario. Poesia completa: poemas para a infância. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2006.
ROCHA, Ruth. Quando a escola é de vidro. In: Este admirável mundo louco. 15 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1986.
Imagem 2: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgymx-cOOFwZ2WwHw7KjG8YGq11SrAHQNKpLOQSJRaFJJ80CI6zePBxAHEePUT-iK_hsiDg_b7zb_FOGapGOaSJXYAg266Z1B4F1b7GqnIvW9jTJc8QWiKi734e-YxSlqfL3aYqhjHkZh-1/s1600-h/vidro
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Encantar as crianças pelo belo, fazê-las se apaixonar pelo encantamento com as letras é fazer do mundo o quintal dos sonhos... casamento mais perfeito esse entre quintal, sonho, beleza, encantamento, letras e meninada.
ResponderExcluirComo amante de poemas, apaixonei pelas citações.
Abração.
Jamille,
ResponderExcluirO nosso saber é um composto de todos outros saberes, re-inventamos a roda, o conhecimento vem assim da cooperação e nos ajuda a Ver melhor. O amor sabe dar sentido à vida.
As pessoas ensinam umas às outras, Carlos Brandão (2005) afirma que “no círculo, tudo o que é bom de ser conversado, de ser pensado, de ser aprendido, de ser sabido, de ser trocado e dialogado, vai saindo do fio da conversa de todos entre todos, de todas entre todas”.
Fio-de-Ariadne enreda, desenrola e liberta. Ninguém aprende sozinho!