quinta-feira, 17 de março de 2011

Sobre Quintais e suas múltiplas linguagens: remix de palavras, textos e letras

André Derain - Arbres à Collioure, 1905
O apanhador de desperdícios, de Manoel de Barros
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem
de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

O quintal, de Paulo Freire (A importância do ato de ler)
[Por aqui ousei manejar palavras de Freire]
O quintal como primeiro mundo. Qualidade de vida. Onde ali especialmente expandia sua atividade perceptiva. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto multiplicaram a compreensão e as relações humanas.

Aqueles “textos”, “palavras”, “letras” impregnavam-se do canto dos pássaros. Nas danças das copas das árvores reliam-se tempestades, trovões, relâmpagos e por lá até as águas da chuva faziam-no brincar de geografia, a reinventar lagos, ilhas, rios, riachos.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” encarnavam-se no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas cores do lugar e do tempo, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores - de rosas ou jasmins, no corpo das árvores ou na casca dos frutos.

Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o seu gosto.

Por lá conviviam os animais - os gatos da família; o mau-humor do velho cachorro negro do pai e o sumiço de gordas galinhas da avó. Naquele contexto, o universo da linguagem dos mais velhos, crenças, gostos, receios, valores enredava-se a contextos mais amplos. Coisas de língua materna sustentável.

Em ricas experiências de compreensão do mundo imediato, recombinando bemquerenças e malquerenças ressignificando sentimentos característicos do nosso século, competitivo e bem pouco cooperativo, as (re)leituras ali cultivadas fluíam. Até por que foi lá no chão do quintal de sua casa, e bem à sombra das mangueiras com as próprias palavras ainda tatuadas do mundo maior de seus pais é que foi alfabetizado. Paulo teve o chão como quadro-negro e gravetos como seu giz.

Entretanto, foi com Quintana que aprendi que a beleza não só encanta, ensina e faz aprender.

Com ele, crianças de todas as idades, em seus corpos relacionais, redescobrem que o quintal é o melhor lugar de "se" fazer poesia, guardar borboletas e aprender de forma integrada com a vida. Chega de escola de vidro onde borboletas ficam ali guardadas, como se fossem de papel. Como elas respiram lá dentro?

Privilegiado lugar é lá no mato, coisas e lendas do mato, dos quintais de Andrade, Freire e “Quintana”.

A margem - Matisse (1907)
A beleza é possível como contraponto à violência e à revisão simbólica e bem lá no laboratório vivencial da escola do "mato", no chão ou sobre águas, aprendizagens situadas no bosque de uma ilha, a reencantar a educação por entre relações, ideias, conhecimentos, a vida que ali, aqui e acolá se transversaliza e faz as aprendências terem novos sentidos.

Fecha-se esse remix bricoleiro, com a sensibilidade poética de Quintana, e por três vezes:

Os Sonhos das Lagartas
As lagartas não podem acreditar
na lenda das borboletas tão antiga
entre o seu rastejante
e esforçado povo...
mas sua felicidade
consiste em relembrar, às vezes,
o absurdo e maravilha desse velho sonho:
o de se transformarem, um dia, em borboletas.

Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Pequeno Poema Didático
O tempo é indivisível. Dize,
qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
contra o vento incerto e vário.
A vida é indivisível. Mesmo
a que se julga mais dispersa.
E pertence a um eterno diálogo
a mais inconseqüente conversa.
Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!

Ah! Antes que me esqueça entrecorto aqui o dizer de um querido amigo que já passou pela escola. Se a escola é o quintal, ela em sua concretude sabe o valor do húmus, recicla os dizeres “da fruta podre rejeitada pela meninada no alto de uma árvore que não dá mais nem folhas”, pois lá na escola, o quintal ampliado de Freire está sempre “à espera de novas e novas primaveras”...
E que venham as borboletas!

Referências
BARROS, Manoel de. O apanhador de desperdícios. In: Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. (p. IX).
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. In: A importância do ato de ler: em três textos que se completam. 3 ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983. (Coleção Polêmicas do nosso tempo.) p.11-24.
QUINTANA, Mario. Poesia completa: poemas para a infância. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2006.
ROCHA, Ruth. Quando a escola é de vidro. In: Este admirável mundo louco. 15 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1986.

2 comentários:

  1. Encantar as crianças pelo belo, fazê-las se apaixonar pelo encantamento com as letras é fazer do mundo o quintal dos sonhos... casamento mais perfeito esse entre quintal, sonho, beleza, encantamento, letras e meninada.
    Como amante de poemas, apaixonei pelas citações.
    Abração.

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  2. Jamille,

    O nosso saber é um composto de todos outros saberes, re-inventamos a roda, o conhecimento vem assim da cooperação e nos ajuda a Ver melhor. O amor sabe dar sentido à vida.

    As pessoas ensinam umas às outras, Carlos Brandão (2005) afirma que “no círculo, tudo o que é bom de ser conversado, de ser pensado, de ser aprendido, de ser sabido, de ser trocado e dialogado, vai saindo do fio da conversa de todos entre todos, de todas entre todas”.

    Fio-de-Ariadne enreda, desenrola e liberta. Ninguém aprende sozinho!

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