sábado, 23 de janeiro de 2010

A ação antrópica presentificando o sentimento de ilegitimidade e o sentido de infância

Habitamos um mundo, porém, segundo Maturana e Varela (2001, p. 28), "não vemos o 'espaço' do mundo; vivemos nosso campo visual. Não vemos as cores do mundo; vivemos nosso espaço cromático". E daí? precisamos acordar, e no jogo de palavras dar-a-cor. O tom de nossa consciência corporal está nas multirreferências, interlocuções, acessos, sobrevôos, mergulhos e conhecimentos que vamos estabelecendo nas (re)leituras de mundo. Assim construimos nossa autorreferencialidade.

Diante dos fatos atuais que assolam a realidade do Haiti, das enchentes a focar pessoas em risco e sofrimento, lembrei-me de outras tantas tragédias chamados a assistir, como sempre, na tela global. E as imagens que nos acompanham cotidianamente? Muitas vezes nos são invisíveis.
As estatísticas da escola pública no Brasil nos mostram uma história assustadora e precisamos avaliar o que mudou em menos de um século. Patto (1999, p.19) nos estampa um cenário desolador do pós-guerra, pois, "do total de crianças que se matricularam pela primeira vez no primeiro ano, em 1945, apenas 4% concluíram o primário em 1948, sem reprovações; dos 96% restantes, metade não concluiu sequer o primeiro ano". Precisamos revisitar esse período histórico na tentativa de entender o papel de educadores que enfrentam e herdam a história da educação brasileira.
Na páginas da vida...
Após 1945, o mundo soergue-se com muitas mulheres e crianças órfãs... O que significaram o entrelugar de 1945 a 1948 que levou a um novo movimento mundial, exigindo novos paradigmas a revisitar dores para proclamar alegrias. Muitas razões e ideologias se misturavam. O Brasil ainda tentava se livrar das marcas escravocratas, das muitas submissões e corrupções.

Em 1948, o Estado de Israel é criado para ser a pátria dos judeus. A crise de 1948, no pós-guerra, delineia a construção do Muro de Berlim dividindo a Alemanha. A guerra fria perdurou por quase 30 anos. E o Japão desolado passou por períodos caóticos, conseguiu se reconstruir e tornar-se a segunda maior potência econômica mundial na década de 90. Em 1989, a queda do muro de Berlim inaugura um novo tempo na história mundial.

Ainda em 1948, proclama-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos na Assembléia das Nações Unidas, por sua vez fundada em 1945, com o objetivo de criar uma plataforma de diálogo entre países e evitar guerras tão devastadoras para a humanidade.

E hoje, o que significa agora a devastação de um único país? É uma tragédia mais uma vez humana, provocada por homens e suas nações inteligentes que sobrevoam as naturezas circundantes e interpenetrantes. Como o princípio do poder, interdependência e solidariedade são vistos nesta guerra ambiental? A sustentabilidade da vida?

Quantas crianças órfãs soerguem-se dos escombros? O que ocorrerá neste intervalo que antecede definições mundiais das nações humanas? Como está a "Deusa Gaia" (na mitologia grega é a personificação da Terra, propiciadora dos sonhos e protetora da fecundidade)?
O planeta adoece. E em cada esquina assistimos a miséria de olhos vendados (!?). A desolação a nos devastar o espírito. O choro inaudível. Alunos reprovados mais uma vez. Histórias de submissão e clamor proclamam por direitos humanos desde antes até daquele 1945-1948.

O que fazemos no cotidiano das salas de aulas e nos metros quadrados pedagógicos da escola? Conscientizar ou sensibilizar? Talvez nos tornamos mais humanos quando nos permitimos ouvir nossos alunos, alongar o olhar e a aplicar - com cuidado - o método da falseabilidade que atesta a necessidade de inclusão de mais uma criança que se apresenta com diagnóstico de cuidados especiais na escola...

O que isso significa? Uma criança no chiqueirinho ficou por mais de seis anos a clamar pela atenção da mãe que, com toques especiais, fazia bolinhos de carne para o pai vender durante o dia inteiro, assim poderiam juntos sustentar a família. A venda dos bolinhos para exigentes paladares aumentava, a mãe preocupada com a higienização dos alimentos e na conquista de mais clientes acabava esquecendo de ser feliz e de fazer feliz seu filho. A criança cresceu e a linguagem era precária, bom material de estudo psicopedagógico.


Seu andar era arrastado e por bloco, como robocop, sua fala ininteligível, sem autonomia não brincava, o olhar congelado parecia saltar do corpo ao ver um armário multicolorido e cheinho de brinquedos da psicopedagoga. Sequer sabia apontar com a mão um dos brinquedos à sua escolha. E o sorriso onde estava? Mas, o que lhe significava aquela oportunidade? Pegar o novo então tornou-se algo mais difícil ainda. Sua fala disártrica e a lentificação psicomotora instigavam a comunicação e as novas aprendizagens. Barreiras a serem vencidas entre dispostos interlocutores.

O tempo nem foi percebido pela mãe, que conseguiu comprar uma casa para a família com seu esforço e o do marido também ausente na criação da criança. E mais de seis anos se passaram naquela prisão abaixo da mesa da cozinha. Nem o choro era linguagem. Devia esperar o tempo do misturar, enrolar, fritar, limpar, guardar, embalar. Essa é uma história dentre tantas outras que nos fazem aprender a lidar com a criança pedagogicamente sem rotulá-la, mesmo com diagnóstico.


Todos podem aprender e nos surpreender com seus avanços. A miséria humana está em deixarmos de lado os preconceitos, as dificuldades pessoais, o conforto que nos aprisiona e nos desumaniza.

Zilda Arns venceu a barreira que separa territórios, o amor transcende limites e rompe paradigmas, é linguagem universal. Com ela aprendemos a enfrentar nossos distanciamentos e proclamar amor em cada esquina e por entre veículos a nos guiar nas ruas, avenidas e becos da cidade. Caminhamos e as pessoas não são mais invisíveis. Saimos do conforto de nossa prisão domiciliar. Um gesto, uma palavra, um olhar pode salvar vidas. Inclusive a nossa.

Talvez descubramos que aquele bem ali foi nosso aluno, que repetiu ou saiu da escola no meio do caminho cansado de nossos discursos cheirosos, assépticos, cheio de verdades, motivos e suas razões. De que lugar falamos?

Quem visitou o aluno faltoso, sujo, irrequieto, desmotivado, imaturo, preguiçoso e cheio de deficit educacional? É cômodo culpar a família pelos desalinhos dos alunos das escolas acreditando na "teoria da carência cultural", pois, tradicionalmente as causas do fracasso escolar foram localizadas em características bio-psico-sociais do educando, no contexto de uma concepção funcionalista de vida social.

A escola e a sala de aula podem fazer a diferença na vida dessas crianças. Quem sabe podemos evitar que novos muros se ergam. Ficaremos a aguardar algum movimento da massa a clamar por aquilo que ajudamos a fazer quando jogamos o papel de bala nas vias que nos circundam (?).

Sabemos que a educação sozinha não é a redentora de um sistema. Qual é o significado dos projetos "políticos" pedagógicos nas escolas? E do planejamento no início de cada ano?

Devastação humana no período de guerra, ação humana; perturbação climática, terremotos e enchentes assolam o planeta neste último ano da primeira década do século XXI, reação das naturezas - e dentre elas, a humana. Suicídio coletivo. Devastação nos bancos escolares.

2010 - ano da biodiversidade...

Saúde e meio ambiente. Tema transversal? Interdisciplinaridade? Deusa-Gaia em perigo! Exige-se sensibilidade, compreensão, atitude, conhecimento, medos enfrentados, nojos e vergonhas desconstruindo/descontruindo-se...

Visitando uma criança da escolinha próxima do lixão descobre-se o motivo de sua saída da escola dos limpos, sua casa foi toda construída de material que veio do lixão, inclusive os copos, talheres, pratos, panelas, ventilador, cadeira, mesa, cama e a roupa da família. Crianças brincam com ratos e baratas e assustam a professora. Famílias segregadas pelos muros urbanos.

Qual é a linguagem da escola? Somos professores formados numa academia que prepara pedagogicamente o educador para receber o aluno ideal. Somos representantes e reprodutores da cultura da "classe média". Didática que romantiza a idéia de florzinhas de papel crepom, unhas limpas e cabelos sem piolho. E basta isso para limpar e criar consciência na(s) família(s) e comunidade?

- Em que contexto está situada a escola pública?
Recomendo a (re)leitura do livro de Maria Helena Souza Patto, "A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia", e o de Nadia Bossa, "Fracasso escolar: um olhar psicopedagógico". Sobre sentimento de infância, melhor ler "História social da criança e da família", de Philippe Àries, e revisitar a edição de Sônia Kramer sobre "A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce" - e dar um novo sentido a infância. Emergências. Urgências. Como contrapartida, três livros de Georges Snyders, "A alegria na escola"; "A escola pode ensinar as alegrias da música?" e "Escola, classe e lutas de classe". Os dois primeiros indicados (Patto e Bossa) trazem seis estudos de casos importantes e contemporâneos que nos fazem descontruir (pre)conceitos e derrubar os muros que nos afastam das crianças que se assentam nos bancos das escolas em busca de equidade e sua materialização, alimentos, nutrição, revitalizar realidades e seus sonhos. Dentre eles está o de G., o menino de 6 anos e 11 meses e seu cotidiano no chiqueirinho, de choros sufocados e olhar contemplativo.

"A educação é, pois, um constante trabalho de saber traduzir e reconstruir sinais codificados pelos sentidos (…) o futuro de um organismo nunca está determinado em sua origem" (Maturana, 1999, p.29).
Amém!
Referências
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.
PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
Imagem 1 - muro de Berlim: http://www.holandesa.blogger.com.br/2008_05_01_archive.html
Imagem 2 - lápis de memória - cartum: http://jboscocartuns.blogspot.com/

Imagem 3 - deusa Gaia: http://sagrado-feminino.blogspot.com/2009/12/volta-da-deusa-mae.html
Imagem 4 - muro de Berlim: http://blog.zequinhabarreto.org.br/category/historia/page/2/

Um comentário:

  1. Olá minha amiga.
    Gosto de passar por aqui porque estou sempre levando algo para refletir.
    Em geral na minha própria vida mesmo.
    Beijo grande.
    FOI DESSE JEITO QUE EU OUVI DIZER... deseja um BOM DIA !
    Saudações Florestais !

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