segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Alfabetizar e Letrar: da variedade linguística à competência linguística


Ouvi hoje professores sobre as palavras do universo da criança ribeirinha da Ilha de Jutuba (PA) a partir da palavra açaí, e chegamos às brincadeiras da corrida do bocó e do pular macaca.

Bocó vem de burro, ou de montar num burro, a vassoura do açaí depois de seca enverga. A parte que se liga ao tronco serve como montaria, assemelha-se ao faz de conta da vassoura que as crianças imaginam galgar um cavalinho. A vassoura do açaí arranha o chão, faz barulho, cada menino faz a sua montaria e sai correndo no bocó até o pique marcado, quem chega antes ganha a corrida.

Pular macaca é como brincar de amarelinha, assim as meninas se referem a esta brincadeira. Gêneros distintos, escolhas marcadas.

Estávamos junto a entender como aliar código e significado e começamos a relacionar, brinquei com o grupo a dizer palavras com:

/si/ (fonema), surgiram “ci” ou “si”, geralmente letras iniciais: cinema ou sino, cidade ou sinuca. Depois do meu toque à consciência fonológica, foram complementando: assassino, próximo, desci, fascinação...
si (sílaba), surgiram: básica, trânsito, Brasil, silêncio...

Nomes de crianças com:
S inicial: Sandro, Simone, Sofia
S final: Luís, Lucas, Taís
S no interior: Rosinha, Teresa, Elisângela
S precedido por consoante: Celso, Robson, Cristina
SS: Vanessa, Alessandro, Cassiano

Depois solicitei que pensassem nas Letras Monogâmicas, o “casamento perfeito”, a “fidelidade absoluta”, que a gente pode ensinar o código sem medo de encontrar variações (casamento sem traições):

- de supetão, assim logo no início, o pensar sempre trava, depois que entendem, topam a brincadeira, relaxam, a coisa engrena e daí surgiu: B, P, D, T, F, V, NH

E as poligâmicas? Pois é, já havia começado a brincar com uma delas, a letra S.

Depois lembraram da letra X como sendo também poligâmica:

Xícara, Xadrez, Xuxa /ch/                            Exato, Exame /z/
Contexto, Excelente /s/                               Máximo, Excesso /ss/
Sexo, Complexo /ks/

Outras poligâmicas: Z, C, SS, SC, SÇ, XC

Para associar outros universos temáticos, a leitura de obras de literatura infantil ajuda a brincar com nomes, daí veio:

BENTA             (menta / lenta / senta / tenta)
NASTÁCIA         lembra...
NARIZINHO       lembra...
EMÍLIA             lembra...

Trabalhar Narrativas Cantadas: A bela rosa juvenil / Cinco Patinhos (Xuxa Só para Baixinhos) / Dona Viúva / Teresinha de Jesus

E CHARADAS:
a) Qual a diferença entre TARTARUGA e BARCO?
A tartaruga tem o CASCO em cima e o barco tem o CASCO embaixo.

TARTARUGA               e                      NAVIO             =          CASCO

CASCO (qual o personagem da HQ que tem medo de água?) =    CASCÃO

Variações encontradas nas crianças ribeirinhas:
NAVIO / BARCO / CANOA / CASCO / CASQUINHO
(há semelhanças e diferenças na palavra e no significado)

b) Está na parede e nas canetas?

PAREDE                      e                      CANETA          =          TINTA

c) O que é a TROMBA para o elefante? (mão)
E a TROMBA do tamanduá? (focinho-boca)
E a TROMBA de gente? (cara fechada, “fechou o tempo”)

ELEFANTE       +          TAMANDUÁ    +          GENTE             =          TROMBA
(plurissignificação)

CURIOSIDADES CHAMAM PESQUISAS:
O SAGUI MENOR DO QUE UMA ESCOVA DE DENTES
Clique aqui para assistir ao vídeo


O menor macaco do mundo, o sagui-leãozinho, é do tamanho de uma escova de dentes e pesa 130 gramas. Encontrado no Amazonas, é tão pequeno que alguns índios o deixam no cabelo para que cate piolhos e outros bichinhos”.

(Solicitar que tragam escova de dentes e embalagens de produtos com aproximadamente 130 gramas / Olhar o mapa e encontrar o Amazonas / Pesquisar a tribo indígena - ampliar informação).


DENTES + GRAMAS + ÍNDIOS + PIOLHOS (palavras a serem trabalhadas)


ES    CO    VA                               PI    O    LHOS
ES    CO    LA                               BI    CHI  NHOS
SA    CO    LA
ES    CO    LHA


Para ler a matéria sobre a Sagui e outras curiosidades, clique aqui.


- Outra informação importante: para melhor entendermos o motivo de usarmos “m” antes de p e b, e não a letra “n”.

A lógica é articulatória.
M - B - P são fonemas que compartilham do mesmo ponto articulatório, ou seja, são fonemas bilabiais.
E ao contrário, o fonema N tem característica linguodental, se emitido antes de P e B, por isso dificulta a co-articulação desses fonemas. Essa razão deve ser explicada  exemplificada para o aluno, a aluna.


Por exemplo: Fale a palavra "pomba", agora diga bem devagar separando as sílabas: POM + BA, perceba que no momento que vamos pronunciar o "ba" somos obrigados a fechar a boca, assim fica mais caracterizado um "m", onde fecha-se a boca na pronúncia.


Agora diga a palavra "ponta": PON + TA, perceba que a nossa língua se recolhe ao pronunciar o "n" e encosta nos dentes ao pronunciar o "ta", e esse som com a boca aberta caracteriza um "n" . Fale "dente", e sinta - é consciência fonológica!


Assim vamos trabalhando a aprendizagem e desenvolvendo o conhecimento. As atividades propostas ajudam a conhecer as questões ortográficas da Língua Portuguesa. É importante trabalhar a consciência fonológica sempre com o auxílio de referenciais significativos para o alunado: rótulos, nomes e palavras já contextualizadas - como nas sugestões acima. Dessa forma, podemos completar a análise e as possíveis relações em todas as instâncias da língua oral e escrita: o texto com função social, os conteúdos de Língua Portuguesa, o nome de meninos e meninas da turma, o nome da letra, o som que ela pode representar naquele contexto e o alfabeto.

Rasa é o cesto que vale como medida para venda.
Casquinho é o tipo da canoa bem "fininha".
Com os professores e as professoras da Ilha de Jutuba aprendi mais uma palavra nova, bem até porque ainda estou aprendendo as falas paraenses, como paranaense, e mesmo estando por aqui há 20 anos.

A palavra é RASA, vindo da conversa sobre o Açaí, a vassoura, a brincadeira, os meninos. Falei a eles para refletirem sobre o que Vygotsky nos conceitua como sendo “a palavra enquanto microcosmo da consciência humana”, e o que entendemos disso em nossa práxis?

Açaí tem a ver com Bacaba, com Rasa, com Vassoura, com Trabalho, com Brincadeira, com Peconha, com Guarumã, com Guaraná...


A rasa é um cesto fabricado da palmeira de guarumã (guarumã-açu). Nesse cesto transportam-se os frutos do açaí após a debulha (operação manual para separar os frutos maduros do cacho) até as embarcações que o conduzem ao trapiche de Icoaraci ou de Belém. Nesse trabalho participam muitas vezes todas as pessoas da família, incluindo as próprias crianças.


Uma rasa possui cerca de 14 quilos de açaí, e que pode custar R$ 5,50 para o produtor e no período da entressafra chegar a custar R$ 23. (sistema de valor e sistema de medida, medida arbitrária - etnomatemática).


É preciso fazer com que o conteúdo atravesse as disciplinas, mas, tenha significado para a criança, precisamos saber trabalhar o código e a produção de sentidos. Chamamos de etnoalfabetização, respeito pedagógico que destaca o processo da aprendizagem que considera as diferenças e peculiaridades de um grupo e no caso das crianças ribeirinhas, a partir de suas percepções, sua linguagem, seus costumes e sua cosmovisão. É a palavra da criança, é a palavramundo e é por isso, a palavra o microcosmo da consciência humana. Daí se mostra a necessidade de se desenvolver a competência linguística da criança.


* Variedade lingüística = identidade, cultura própria, dialeto – aprendizagem empírica
* Competência lingüística = prestígio na sociedade letrada – aprendizagem escolar

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Do simbolismo de 2ª. ordem ao simbolismo de 1ª. ordem: produção de sentidos é a referência


Saussure e Vygotsky falam sobre a relação entre significado (conceito da palavra) e significante (código: som + letra). Porém Vygotsky nos esclarece que a linguagem escrita é de início um simbolismo de segunda ordem no processo discursivo, nas formas de comunicação, nas trocas... Primeiro vem a sensação, o desejo, o sentimento, a vontade, o envolvimento, o gesto, a mímica, a brincadeira, o jogo, e tudo assim é natural. Quando aparece a exigência de aprender e decifrar exige compreender o que o outro diz, exige apropriação do código, da técnica que permeia, às vezes de forma exaustiva, cansativa... É a aprendizagem escolar.

A necessidade de aprender faz o sujeito enfrentar as barreiras do código e vislumbrar o sentido, para isso a função social sobrevem, os estilos mostram novas possibilidades, os gêneros fazem a tarefa ser prazerosa, e a inteligência alia-se ao prazer, e vice-e-versa, a diferença está no mediador, no intérprete da língua, na forma como o ensinante se tornou leitor também.

Assim o simbolismo de segunda ordem se transforma em simbolismo de primeira ordem. Pelo prazer e capacidade de reinventar a palavra, o texto, o contexto, o pretexto, o subtexto e deixar textualizar-se na própria escrita e seus enigmas, permeando-se na estilística e na regra, na força do pensamento e da linguagem.

Brincando com as palavras, a relação significado e significante, e reinventando a palavra, ou seja, atribuindo sentido ao dito/ouvido, ou seja, o social interage com o individual a exigir compreensão mútua, e se reconhece a palavra como fundamental no processo comunicativo e discursivo, Ruth Rocha nos premia com o seu Marcelo, Marmelo, Martelo:

E Marcelo continuou pensando: ‘Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar assim... [e o que aconteceu depois a Marcelo?]

Nessa compreensão é fundamental entender que Vygotsky nos ensina a pensar e a relacionar sobre o processo de internalização que se reconstrói no processo subjetivo a partir de situações intersubjetivas, ou seja, segundo Oliveira (1992, p. 80):


"A passagem do nível interpsicológico para o nível intrapsicológico envolve, assim, relações interpessoais densas, mediadas simbolicamente, e não trocas mecânicas limitadas a um patamar puramente intelectual. (...) A questão de formação da consciência e a questão da constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade nos remetem à mediação simbólica e, consequentemente, à importância da linguagem no desenvolvimento psicológico do homem".


"Cada macaco no seu galho"
O Outro é importante no processo das aprendizagens. Por isso não podemos dizer que a alfabetização é um processo natural, por necessitar a mediação de signos e através do mediador - ensinante leitor, que tem gosto de ler - que sabe bem contagiar, seduzir ou desafiar o outro em estratégias didáticas próprias do ensino. Aos poucos, o simbolismo de segunda ordem vira simbolismo de primeira ordem.


Ensinar é um deleite desafiador, inquietante, único em cada processo mediador!

Vygotsky relaciona dois planos: o interior (semântico e significativo) e o exterior (fonético) na construção da fala social e na escrita significativa/representativa. Juntos, o interior e o exterior, formam uma verdadeira unidade, cada qual possui leis próprias e apresenta movimento independente.

Saussure fala em estrutura, do valor linguístico da palavra; Vygotsky em desenvolvimento, enfatiza, desvenda que os significados das palavras se transformam com o tempo, com o uso, com a colocação da palavra no seu conjunto. Um valoriza a unidade estrutural e o outro a unidade de sentido. Ambos valorizam a cultura do sujeito porque somos constituídos pela linguagem que conhecemos.

Alfabetizar é saber unir com graça e harmonia código e produção de sentidos, mediados pela linguagem de nossa gente e de outras gentes, assim vamos desenvolvendo e recriando a linguagem através de nossas interações e discursos.

Referências
OLIVEIRA, Marta Kohl. O problema da afetividade em Vygotsky. In: La Taille, Y., Dantas, H., Oliveira, M. K. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992.
Rocha, Ruth. Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias. 43 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1976.

sábado, 20 de agosto de 2011

Açaí e sua rede de conhecimento no mundo da palavra: alfabetizar-se na cultura da escola


O singular e o plural / O sujeito e o objeto
se misturam, como nesta obra de
 minha cunhada Miriam Gonçalves

Alguns equívocos de se trabalhar a palavra gera exaustão na criança, no alfabetizando. O professor desconhece o que Vygotsky chama de aprendizagem e desenvolvimento. Como uma criança aprende? Como um sujeito aprende depois de ter feito etapas mal feitas em sua escolarização?

Paulo Freire nos apresenta a palavramundo quando reitera por vezes que a palavra mundo precede a palavra da criança, ou seja, “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”. E que para Vygotsky (1991, p. 132) “uma palavra é um microcosmo da consciência humana”, por isso nos mostra que a palavra está na criança e em sua rede de significados, a qual reinventa sentidos ao bel prazer e para nosso deleite. Vamos aproveitar e também debulhar a palavra, pois, Sônia Kramer diz que a palavra precisa ser trabalhada logo em seguida. Código e Sentido juntos debulhados e enredados.

E falando de nosso ou de outros microcosmos...

Lembra da tagarelice de Emília quando fazia a sua “reforma da natureza”? A danada aproveitou que Dona Benta e todo o pessoal do sítio foram chamados para reformar o mundo na Conferência da Paz (Paris, 1919), que ocorreu logo ao final da Primeira Guerra (1914-1918). Lá se buscava reescrever um tratado a partir do depoimento dela com a Tia Nastácia. Afinal, as duas mulheres sabiam como melhor governar a paz e a alegria do sítio através de sua Humanidade e Bom Senso - admirava-se o Duque de Windsor lá "pelas zoropas" e pra banda da Inglaterra. Pois é, as duas tinham o Visconde como consultor científico.

Noventaequatropéia e o espanto das gentes.
Monteiro Lobato e a Reforma da Emília
E lá pelo Sítio, sósórósósó a Emília foi aprontando, mas, orientava os bichos a ajudá-la a fazer uma outra reforma e bem diferente de tentar modificar a humanidade, mas, não esquecia da natureza humana em todo rebuliço, e olha lá um olho no pé e bem no “mingo” para evitar tropeços nas pedras, espinhos e estrepes. Assim deixou Emília, os ditadores com as mulheres do sítio de bom senso, munidas de belo espírito prático e tão cuidadosas de tudo, porque arretada do jeito que era, faria ela, a boneca de pano, um grande escândalo internacional.

Tênia Emília, com a ajuda de sua amiga rã, e no laboratório oco de uma árvore foi criando o passarinho-ninho, a noventaequatropéia, o livro comestível, o porco magro, o sei-lá-que-animal-é-esse, o bule que apita, o pernilongo cantor, a gaiola de cabelo, as pulgas moles e paradas no meio do ar, as moscas sem asas, a reforma na vaca mocha, a reforma na personalidade das borboletas azuis. E seus tantos enxertos in anima vile em formiga, grilo, minhoca, pulga e centopéia reaproveitando aulas sobre glândulas e outras fisiologias...

Depois, bem foi ela mexer com “O espanto das gentes”...

Quantas crianças por aí afora não realizam seus experimentos, inclusive questionando e reinventando palavras como é o tal do “biriquitote xefra”, do Marcelo Marmelo Martelo da Ruth Rocha.

Cada aluno que chega, traz consigo a vontade de encontrar os seus colegas, de brincar, de “aprender muitas coisas”, de reinventar coisas e palavras tais, enfim, percebemos que o afeto medeia as atividades, influenciados pelo mundo interior e exterior. Não se pode separar o sujeito de seu objeto, há ali influências mútuas, conhecimento adquire dimensão de autoconhecimento, a formação da consciência crítica é primeiro passo de toda proposta emancipatória. O que seria uma reinvenção?

Giroux e Freire pensam na perspectiva de currículo que conteste os modelos puramente técnicos, segundo Silva (1999, p. 55), “a concepção libertadora de educação de Paulo Freire e sua noção de ação cultural forneciam-lhe as bases para o desenvolvimento de um currículo e de uma pedagogia que apontavam para possibilidades que estavam ausentes nas teorias críticas da reprodução então predominantes”.

Nada de exaurir a criança ao be-a-bá sem sentido, reproduzindo uma palavra só ao longo de um projeto pedagógico. É preciso agregar a produção de sua palavra (objeto-sujeito) na palavra do outro (objeto-sujeito). Ela precisa produzir sentido em tudo o que aprende, caso contrário o seu pensamento com suporte na memória reprodutiva não consegue criar de tão cansada fica.

A palavra "açaí" e seu - nosso microcosmo
À aprendizagem segue o desenvolvimento, segundo Vygotsky, é preciso que a palavra focada seja vista em diferentes contextos ou gêneros literários. A nova palavra se desdobra nos significados. Do Açaí, Yasaí, Fruta-que-chora, Açaizeiro, Vassoura, Corrida de Bocó, Corrida de Peconha, Macaca, Brincadeiras, Trabalho, Colheita, Venda, Comércio, Fome, Boca Roxa, Boca Pálida, Energia, Tapioca, Peixe, Carne-de-sol, Bicho Barbeiro, Higiene, Bacaba, Barco, Casquinho, Trapiche, Icoaraci, Ilha, Rio, Ribeirinho, Águas, Fluxos, Movimentos, Luta, Luto, Alegria, Música, Dança, Festa, Ecojóia, Safra, Trabalho Infantil, Escola, Cidadania, Vida!

A palavra Açaí se desdobra em tantas outras, não é mesmo? Então nada de ficar exaustivamente o ano inteiro trabalhando só com ela. Sósórósósó Açaí? Bem, cria-se o “mapa mental” bem legal com o alunado.

Contraste...
Qual a diferença do açaí e da bacaba, da vassoura e da “corrida de Bocó”, da fome e da energia, do hematófago bicho barbeiro e do piolho no cabelo, do modo de tomar açaí nas praias cariocas e de tomar açaí no festival de Inhangapi (PA)?

O texto escrito ou imagético da criança não é um vir-a-ser, ela é um sujeito social e histórico, dotada de linguagem própria que traz consigo uma visão de mundo e o dizer característico de sua gente, assim se respeita e se constrói a sua autorreferencialidade através da multirreferencialidade no processo ensino-aprendizagem. 

Casquinhos abarrotados de açaí
Ou seja, "a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo", dá a criança gostosamente a oportunidade de "escrevê-lo ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente" (Freire, 1989, p.22), de uma práxis que permita a criança repetir, re-criar, re-viver a palavra e reinventá-la no texto que representa. Como também cooperar na reforma da natureza - humana - se preciso for, coisas de boneca que vira gente e espanta as gentes com medo do minhocão que vem vindo ou daquele que não "olha-pro-caminho-quem-vem".

Capa Original - 1a. edição 1941
Pois é, o minhocão botou os moradores para correr. E os jornais do mundo inteiro noticiaram e os canhões antiaéreos tentavam atirar contra a Coisa Preta lá de Juiz de Fora corrida pro Canal do Panamá e resolvida a beber sangue dum cavalo velho americano e a fazer as pulgas morrerem estataladas. Mas, que estranho fenômeno, hem Dona Pituitária?

Alguém por acaso sabe do monstro que assustou o mundo naquele lugar e no auge do café?

Coisas estranhas estão a acontecer aqui e acolá. E o texto do aluno a deslumbrar a vida e a nos fazer rir ou chorar - de tanto rir ou chorar mesmo. Quais as hipóteses das crianças e dos demais leitores? A coisa está mesmo preta! rs

Referências
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, 1989.
LOBATO, Monteiro. A reforma da natureza. 38 ed. 13ª. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2004.
ROCHA Ruth. Marcelo, Marmelo, Martelo e outras histórias. 42 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
VIGOTSKII, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 10 ed. São Paulo: Ícone, 2006.
VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. 3 ed. São Paulo; Martins Fontes, 1991.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Como acontece a aprendizagem da criança na fase inicial de sua escolaridade?


A aprendizagem da criança começa muito antes da aprendizagem escolar. A pré-história da aprendizagem acontece primeiro na família quando a criança partilha seus feitos com os mais velhos. Gosta de mostrar o que faz, suas descobertas, seus desenhos, de recitar versos, de tocar no outro, contar acontecimentos de passeios. As tantas ações e operações do pensamento próprio vão definindo sua autoria em meio às marcas culturais que lhe atravessam, até porque “o homem não é apenas um produto de seu ambiente, é também um agente ativo no processo de criação deste meio” (Luria, 2006, p.25).

A palavra, como um microcosmo da consciência humana (Vygotsky, 1991, p.132), é muito importante enquanto indicador complexo das inter-relações da criança com as pessoas que a rodeiam, porém, segundo Piaget (apud Vigotskii, 2006, p. 114), é “só no processo de comunicação que surge a possibilidade de verificar e confirmar o pensamento. A necessidade de verificar o pensamento nasce pela primeira vez quando há uma discussão entre crianças (...) e a cooperação favorece o desenvolvimento do sentido moral na criança” (p.114).

O bom ensino não transfere conhecimento, mas, cria as possibilidades para a sua produção ou a sua construção, assim Freire se percebe e nos inspira a docência, segundo ele, “quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento” (Freire, 2000, p.52).

Ou seja, as crianças precisam aprender umas com as outras e através da mediação do professor, quando a acomodação do dito e do pensado projeta-se em novo pensamento, na leitura desse mundo redescobre a palavra, reinventa e renasce nela.

A palavra aprendida, repetida e escrita pode ser reinventada nos contextos, nos intertextos, nos múltiplos espaços das autorias, porque “o intelecto não é precisamente a reunião de determinado número de capacidades gerais: observação, atenção, memória, juízo etc., mas sim a soma de muitas capacidades diferentes”. (Vigotskii, 2006, p.108). Somam-se nesse ponto as “muitas capacidades particulares de pensar em campos diferentes; não em reforçar a nossa capacidade geral de prestar atenção, mas, em desenvolver diferentes faculdades de concentrar a atenção sobre diferentes matérias” (ibid, p.108), ou seja, a tarefa do professor é ampliar o leque de ações e operações e não somente promover uma única capacidade de pensar. As múltiplas linguagens ajudam a interpretar uma realidade e a produzir novos sentidos.

Quando lemos ou escrevemos não executamos nenhuma ação psicológica complexa, mas apenas automaticamente reproduzimos técnicas que aprendemos em estágios anteriores de desenvolvimento. O ato de escrever inicialmente é puramente intuitivo, a criança imita um adulto escrevendo, sem conhecer ainda a função de recordar. Essa função motora do escrever é como um brinquedo e que aos poucos ganha aperfeiçoamentos do pensamento, das relações, das possibilidades. Segundo Wallon (apud Dantas, 1992, p.38): “o ato mental ‘projeta-se’ em atos motores. O ato mental se desenvolve a partir do ato motor”.

Para aprender a criança precisa ver significado e produzir sentido em tudo o que faz. Segundo Piaget, “o cognitivo é considerado o motor que tem como combustível o afeto”, ou seja, o afeto move a inteligência. No processo do aprender “qual o sentido pessoal que um fenômeno tem para a criança”? (Leontiev, 2006, p. 73). É não simplesmente saber o que ela já conhece sobre o fenômeno, sabemos que “quanto mais depressa ela der àquilo que ela sabe um novo significado, mais rapidamente seu caráter psíquico geral se modificará” (id, p. 61).

Ponderamos nas ações interdisciplinares ou no conjunto das aprendizagens as diferenças nos desempenhos escolares das crianças, pois, segundo Luria (2006, p. 101), “uma criança não se desenvolve em todos os aspectos no mesmo ritmo. Ela pode aprender e inventar formas culturais de enfrentar problemas em uma área, mas, permanecer em níveis anteriores e mais primitivos quando se trata de outras áreas de atividade”. O que facilita, ou dificulta, as aprendizagens são as formas de mediação e acompanhamento longitudinal do desempenho do alunado.

Avaliar a aprendizagem é um ato de cuidar do estudante, pois é importante saber avaliar e não somente examinar,  segundo Luckesi (2005), “ao ato de examinar não importa que todos os estudantes aprendam com qualidade, mas somente a demonstração e classificação dos que aprenderam e dos que não aprenderam. E isso basta. Deste modo, o ato de examinar está voltado para o passado, na medida em que deseja saber do educando somente o que ele já aprendeu; o que ele não aprendeu não traz nenhum interesse”. É a esse não-aprender que se volta o interesse pelo fomento do processo de formação continuada. Conhecer e investigar o que o alunado aprendeu e o que não aprendeu, assim se desenha o processo de avaliação diagnóstica que busca cooperar com o processo pedagógico das aprendizagens escolares.

Os testes padrão apontam o desempenho ruim na área da matemática, ratificando a crença e o dito de estudantes e de diferentes gerações a respeito de ser ela o bicho-papão da escola. Como desmistificar esse mito?

Toda criança tem uma aritmética própria antes de chegar à escola, segundo Vigotskii (2006, p. 109), ela passou por uma “pré-escola da aritmética”, entretanto, a aprendizagem pode tomar direção contrária ao desenvolvimento anterior, pois, pode não implicar “uma continuidade direta entre as etapas do desenvolvimento aritmético da criança”.

O processo de desenvolvimento não coincide com o da aprendizagem, ele segue o da aprendizagem” (Vigostkii, 2006, p.116). É preciso exercitar o aprendido em novos desafios, realizar transposições didáticas e em múltiplas linguagens compreendendo que “o desenvolvimento da criança não acompanha nunca a aprendizagem. Os testes que comprovam os progressos escolares não podem, portanto, refletir o curso real do desenvolvimento da criança. Isto obriga a reexaminar todo o problema das disciplinas formais, ou seja, do papel e da importância de cada matéria no posterior desenvolvimento psicointelectual geral da criança” (id, p.116-7).

Na sala de aula é preciso criar espaços de produção de diferenças, espaços de autorias, lugares de produção e lugares transicionais que se situam entre o brincar e o trabalhar, os limites e a transgressão, o sujeito desejante e o sujeito cognoscente, a certeza e a dúvida e “entre a responsabilidade que o conhecer exige e a energia desejante que surge do desconhecer insistente” (Fernández, 2001, p.56). E, sobretudo, “entre ser sujeito do desejo do outro e ser autor de sua própria história” (id). Assim como a criança apodera-se com suas perguntas dos nomes dos objetos que a rodeiam em casa desde que nasce, na escola, a pergunta dá passagem para muitas e diferentes aprendizagens. O docente deve estimular perguntas, pois “a resposta é sempre um trecho do caminho que está atrás de você, só uma pergunta pode apontar o caminho para frente” (Gaarder, 1997, p.28).


Referências
DANTAS, Heloysa. Do ato motor ao ato mental: a gênese da inteligência segundo Wallon. In: Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus, 1992.
FERNÁNDEZ, Alicia. Os idiomas do aprendente: análise das modalidades ensinantes com famílias, escolas e meios de comunicação. Porto Alegre: Artmed, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 9 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
GAARDER, Jostein. Ei! Tem alguém aí? São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997.
LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem... mais uma vez. Revista ABC EDUCATIO, n. 46, jun. 2005, p. 28-9. Disponível em: http://www.luckesi.com.br/textos/abc_educatio/abceducatio_46_avaliacao_da_aprendizagem_mais_uma_vez.pdf
VIGOTSKII, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 10 ed. São Paulo: Ícone, 2006.
VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. 3 ed. São Paulo; Martins Fontes, 1991.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Educar para a Paz: a educação de crianças, jovens e adultos

O vídeo “Vida Maria” ajuda a organizar discursos porque no conjunto e, em seu papel, emocionados os protagonistas conversam, como em metaconstrução, quando as pessoas se transformam nos detalhes de seus personagens ou conteúdos, misturam-se às possibilidades de Maria, às chances de superação e ao que tem em comum com ela.


Na escola, um de nossos estudantes expressou que não gosta de matemática porque quebraram-no o dedo quando criança, por não decorar a tabuada, outros revelaram que a contínua repetição da falta de afetividade e oportunidade na vida de Maria assemelhavam-se à história da mãe, outras revivem a juventude e as oportunidades que passaram, alguns alunos abaixaram a cabeça pensativos após o filme e as palavras engasgavam na folha em branco, enfim, o filme como um alerta para si mesmos significa não perder situações que possam ser importante porta do tempo que lhes atravessa e ressignifica.

Nesse observar cuidadoso do professor que cuida de observar, compreender e motivar o estudante, algo muito valioso alia-se a pergunta que nos empurra ao saber fazer e mediar as aprendizagens: “que atividades mentais realizam para aprender (...) como vivem e sentem o processo de aprender e que finalidade tentam alcançar para realizar o esforço que supõe”. (Marchesi, 2006, p.32).

Depoimentos significativos marcam e fortalecem ainda mais o exercício docente: “já fui xingado de velho, cabeça branca, papai Noel, mas, não vou desistir”; “muito desses jovens imitam minha maneira de falar, não entendo, por que não vivem a vida deles?”. Educar pela e para a Paz remexe com as idiossincrasias, com olhares arraigados em estereótipos que veem só o que agrada ou não conseguem acolher o outro. O educador é o mediador dessas relações silenciosas ou escancaradas da sala de aula e que, por vezes, impedem de aprender melhor.

Sobre sustentabilidade de vida aqui encerro com Mahatma Gandhi: Se todos trabalhassem para obter seu sustento, e não mais, haveria bastante alimento e ócio suficiente para todos. Então, não haveria gritos de superpopulação, nem enfermidades, nem a miséria que vemos ao nosso redor. (...) Os homens poderão, sem dúvida, fazer muitas outras coisas com seus corpos e mentes, mas tudo deveria ser um trabalho de amor pelo bem-estar comum”.

Referência
MARCHESI, Álvaro. O que será de nós, os maus alunos? Porto Alegre: Artmed, 2006.