segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Provas Piagetianas em Diagnóstico Psicopedagógico

Utilizei algumas das provas piagetianas para avaliar o nível de desenvolvimento de V. A., um menino de 5,3 anos. Seu pai e sua mãe estiveram na Secretaria de Educação inquietos com a realidade vivenciada através de uma criança que sabe ler e escrever, adora brincar e apresenta raciocínio lógico rápido, mas, não apresenta sinais de altas habilidades, vive o processo dos avanços tecnológicos e estuda na educação infantil há dois anos, cursou Maternal e Jardim I. A família teme desestímulo da criança diante da Resolução CNE/CEB n.6, de 20 de outubro de 2010, que impede sua matrícula no Ensino Fundamental e deve matricular-se em escola pública.


Sabemos que um bom projeto pedagógico é capaz de fazer V. A. conviver com crianças que não sabem pegar  um lápis na mão, outras que conhecem algumas letras do alfabeto e sabem escrever seus nomes. Um trabalho de monitoria poderia ajudar. Mas, será necessário saber conviver com as diferenças em sala de aula. O professor está preparado para lidar com essa situação? A escola tem recursos suficiente para dar suporte ao ensino diferenciado?


O nosso papo vai longe...


Mas, aqui trato de apresentar parte do trabalho diagnóstico realizado em algumas dessas provas.


1. ATIVIDADE DE IDENTIFICAÇÃO. Escrita de seu nome e de sua idade. Autorretrato. Desenho do que mais gosta de comer e de brincar. Ajuda a criar um vínculo com a mediadora.

Ato de desenhar coisas que gosta de brincar...
V. A. preferiu escrever seu nome em letra cursiva e fez questão de dizer que tinha a letra c no meio. Ali também quis escrever o sobrenome. Buscou se organizar no papel de tamanho 8,5 cm x 20,5 cm, e na cor azul por ele escolhida dentre rosa, amarela e branca disponíveis. Após comando de autorretrato, iniciou pela cabeça e disse que não havia como desenhar suas pernas, mas, logo propôs o esquema da figura palito para se ajustar ao conjunto. Disse que já havia terminado, porém, em seguida percebeu a necessidade de desenhar as mãos do boneco. De forma desproporcional, deu grande ênfase às mãos - ao fazer, à produção. Sobre o que gosta de comer fez questão de dizer que aprecia muito o chocolate, embora saiba que não pode comer muito e que sua irmã gosta de comer sal, mas não pode exagerar porque pode ficar doente. Desenha seus brinquedos preferidos e dentre eles o robô e o lançador. Seu desenho bastante esquemático toma a forma de relações topológicas, com figuras geométricas definidas. Entretanto, os desenhos ficam soltos sem compor uma cena.

1a. COLAGEM DE SEU NOME
Colando a última letra de seu 1º nome
Diante de uma caixa com muitas letras escritas, em quadrados de cartolina – 2 cm x 2 cm, escolheu desta vez o papel sulfite branco, ouvia atento o comando de pegar as letras de seu nome e colar no papel. Separa um punhado e espalha sobre a mesa, pega letra a letra, diz: “onde está a letra V? agora quero a próxima”, desiste de buscar no monte e vai à caixa, depois procurava as demais nos dois lugares, sentia dificuldade em encontrar a última letra, “acho que não tem”, animado com a questão de estar frio ou quente prosseguiu procurando até encontrá-la. Organizou no papel, uma próxima a outra, na sequência da esquerda para a direita e com a folha na horizontal. Pegou a cola em bastão e colou a primeira, preferindo colocar a cola no papel branco a por no verso da letra.

V. A. colou a segunda letra no meio do papel branco, e após firmar a letra percebeu a distância da primeira, olhou as outras que ainda faltavam e reviu espaçamento, pegou novamente a cola e trouxe para mais perto da primeira letra de seu nome. Redobrou atenção na terceira letra, observou bem o tamanho do papel, mediu a distância da primeira para a segunda e colou a letra C respeitando o mesmo espaçamento. As outras três tiveram o espaçamento estreitado, porém, procurou manter a mesma distância entre elas. Nesta atividade colou somente seu primeiro nome, não fez menção de seu sobrenome.

2. REALISMO NOMINAL

2a. Diga uma palavra grande: ele diz: “éééguaaaa”, logo justifica, “é minha mãe que fala sempre”.

2b. Diga uma palavra pequena, ele pensa e diz: “feia” – “falo para a minha irmã”.

2c. Diga uma palavra parecida com pato, ele olha, desvia, pensa, ri e diz: “cocoricó”, “quá – quá – quá”.

2d. Quando lhe perguntado se baleia-bala, sabão-mamão, sapo-sapato são palavras parecidas, ele diz que sim e quando questionado diz que tem a mesma letra (não fala no som e nem sobre os objetos em si).

2e. Quando questionado porque o Sol se chama Sol, responde que é claro e quente. E porque a Lua se chama Lua, diz que é escura e está de noite. Quando perguntei se o Sol pode ser chamado de Lua e a Lua de Sol? Ele negou confundindo o significante com o significado, ou seja, a criança por volta de 5 a 6 anos, mostra uma profunda confusão entre palavra e coisa, nesse estágio, ela acredita que mudar o nome da coisa implica em mudar a coisa também, segundo Piaget, as crianças nessa fase “explicam” o nome dos objetos pelos seus atributos. Somente na fase do “Marcelo, Marmelo, Martelo” é que ela vai questionando o nome das coisas e não somente as coisas e os fenômenos em si. Segundo Vygotsky (1991, p. 111), “trocar os nomes significaria trocar as características específicas de cada objeto, tão inseparável é a conexão de ambos no espírito da criança”.

Observação: Nas questões de 2a a 2c, V. A. relacionou a questão social da palavra enquanto fala, na 2a interpreta como se palavra grande fosse “palavrão”, uma palavra proibida, e na questão 2b, como se fosse uma palavra que não chega a ser muito ofensiva e mais permitida. Na questão c, refere-se à fala dos animais em si (onomatopéia), relaciona aí também a semelhança com a galinha. Na questão d, preocupa-se em relacionar com o aprendido sobre escrita, embora não tenha sido lhe mostrado figura ou palavra escrita, nesse caso não relaciona som e nem foca nos objetos. Neste conjunto mostra um nível transitório e bastante característico de sua faixa etária.

3. CONSERVAÇÃO DE PEQUENOS CONJUNTOS DISCRETOS DE ELEMENTOS

Material: 40 fichas de mesma forma e tamanho, sendo 20 azuis e 20 vermelhas.

Correspondência um a um no uso das fichas
1º desafio: V. A. escolheu a cor vermelha. Alinhei somente oito fichas de cor azul sobre a mesa, e após solicitação, V. A. foi retirando ficha a ficha de sua coleção e colocou a seu modo o mesmo tanto das fichas azuis, buscando garantir a equivalência da coleção disposta à sua frente, respeitando os limites espaciais e a mesma quantidade de fichas. Ao final, reservou o restante das vermelhas ao lado das azuis.

2º desafio: Espacei as fichas de sua coleção na linha abaixo da minha e perguntei se tinha o mesmo número da minha e ele confirmou reaproximando as fichas, dizendo que assim era uma mais comprida que a outra, eram iguais e que só estavam mais afastadas. Quando a criança tem construído a estrutura de número, o espaço ocupado pelos objetos se torna irrelevante, pois V. A. realiza julgamentos quantitativos impondo uma estrutura numérica aos números.

4. CONSERVAÇÃO DA QUANTIDADE DE MATÉRIA

Material: 2 plastilina (massa plástica de modelar).
Três tempos da prova de massa
Desafios: Com os dois bastões de plastilina em sua mão, de cores escolhidas por ele mesmo, V. A. respondeu que eram iguais no tamanho e diferentes na cor. Questionei sobre o peso e ele confirmou que tinham pesos iguais. Na proposta de fazer uma minhoca e uma bola das plastilinas, V. A. perguntou o que era minhoca, dando a entender que não conhecia, falei sobre se conhecia cobra e pedi que fizesse então uma, falei que a minhoca é bem menor e que vive embaixo da terra, depois ele mesmo disse que iria fazer uma minhoca. Primeiro fez a bola, caprichando no formato, e depois faria primeiro uma outra bola para depois esticá-la em forma de cobra/minhoca. Com a forma modificada dos bastões, perguntou-se a V. A. se havia a mesma quantidade de massa, de peso nas duas. V. A. disse que não, para ele a bola era mais pesada que a cobra/minhoca. Apresentou conduta não-conservativa.

5. CONSERVAÇÃO DA QUANTIDADE DE LÍQUIDO (transvasamento)

Material: 2 copos de vidro do tipo americano, 1 taça de vidro, tipo champanhe, 1 jarra de plástico, água com anilina verde.
Transferindo a água de um copo para a taça
Desafios: Convidado a encher os dois copos americanos até a marca circular, indicada pela seta azul, foi solicitado a descrever o que via. Confirmou que os copos tinham o mesmo tanto de água verde, e que não era suco. Em seguida, passa a água do copo para a taça. Para V. A. há mais água na taça do que no copo. Justifica por ser a taça mais alta do que o copo. Assim não atende ao conceito de reversibilidade. Procurou-se relembrar com ele a igualdade inicial dos níveis e se propôs o retorno empírico para ajudar a repensar: “se você puser o que está na taça de novo no copo vamos ter a mesma medida anterior?” Victor diz que sim. Volta o exercício de transferir para a taça e ele mantém a conduta não-conservativa, e que vai aproximadamente até os 6 anos de idade.



6. CONSERVAÇÃO DO NÚMERO ELEMENTAR

Material: 6 caixas de fósforo vazias e 10 tampinhas plásticas de água
Quatro tempos da prova de conservação de quantidade
As caixas de fósforos foram dispostas na frente de V. A. Foram-lhe dadas as dez tampinhas azuis. Criamos o enredo de que eram tartarugas a brincar foram de suas casas. Depois de tantas horas, escureceu e suas mães chamaram para se recolher. Cada tartaruga mora em uma casinha. Quantas tartarugas sobraram? Essas moram em outra rua de um outro bairro. Victor primeiro colocou cada tartaruga na frente de sua casa e depois colocou cada uma delas dentro de suas casas. Ao lhe ser perguntado quantas tartarugas tinham ali nas casinhas, inicialmente apontou o dedo para a casinha à sua esquerda e depois encolheu o braço, olhou bem e disse que eram oito (8) tartarugas. A essas atribuiu os seguintes nomes: Zorro, Harry, Harry Porter, Fulano, Maria e Francis. Questionado se tinha certeza que eram oito, disse que sim e explicou que se são oito caixinhas e cada uma delas tem uma tartaruga dentro é porque são oito tartarugas. Ele não precisou abrir as caixinhas para contar, abstraiu o número. V. A. conserva quantidades. Compreende o conceito de número.

CONCLUSÃO

V. A. é uma criança bastante atenta e comunicativa, consegue expressar bem seu pensamento. Apresenta raciocínio rápido e se preocupa em fazer as atividades de forma a sempre alcançar bom desempenho. Na atividade de colagem deixou evidente seu senso de espaço e pensamento lógico na estrutura do nome e organização seqüencial. Conhece número e sabe ler conforme pensamento observado na atividade do realismo nominal.

Uma criança com o seu desempenho reúne condições de freqüentar uma classe de alfabetização, mas, se mantiver na educação infantil, por força da Resolução CNE/CEB n.6 de 20 de outubro de 2010, deverá haver projetos específicos, como por exemplo, o de monitoria pedagógica ou de informática educativa, que valorizem o “aprender a aprender”, porém, com acompanhamento do professor regente a fim de garantir medidas especiais e o bom desenvolvimento global da criança, a fim de não desmotivá-lo em seu processo de escolarização. V. A. possui dois anos de escolaridade na educação infantil, nas etapas de Maternal e Jardim I cumpridas anteriormente, e com muito sucesso.


Referências
- KAMII, C. A criança e o número: implicações educacionais da Teoria de Piaget para a atuação junto a escolares de 4 a 6 anos. 5 ed. Campinas, SP: Papirus, 1986.
 - VYGOTSKY, L. Pensamento e linguagem. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Crianças de 5 anos e a Resolução que impede seu ingresso no Ensino Fundamental: alternativas pedagógicas e limites da escola

Palavra Encantada ou Reino Desencantado
Dias desses atendi a uma criança e sua família a respeito da dificuldade de arrumar matrícula no Ensino Fundamental. Antes de confirmar sobre a restrição da Resolução CNE/CEB n.6, de 20 de outubro de 2010, referente ao limite de idade para o ingresso no Ensino Fundamental, procurei ouvi-los, porém, como de certa forma já sabia do caso, primeiro optei por avaliar o nível de desenvolvimento do menino de 5 anos e 3 meses, demonstrado através de testes operatórios piagetianos, para só depois estar com seu pai e sua mãe. Com respeito, neste primeiro contato, dispensei a leitura das atividades realizadas na educação infantil organizadas em pastas.


Estudos: As provas piagetianas constituem um dos instrumentos clínicos mais utilizados no Diagnóstico Psicopedagógico, cuja finalidade é a de ser parâmetro do desenvolvimento cognitivo. A realidade é marcada por vivências e experiências que se dão no nível físico e social. As primeiras representações da criança constituem a sua realidade e são passo em direção às representações lógicas que constituem o conhecimento dessa realidade.


O teste sobre realismo nominal, avalia a performance da linguagem e da comunicação da criança; sua capacidade de compreender a relação entre palavra escrita e a falada, base da linguagem escrita; observa a consciência da palavra enquanto sequência de sons, a habilidade que distingue o significante (palavra) do objeto que representa, ou seja, envolve a consciência da independência das características da palavra em relação às características da coisa representada.


Como ilustração dessa relação, o livro “Marcelo, Marmelo, Martelo”, de Ruth Rocha, propicia um toque de humor porque traduz o caráter lúdico do pensamento simbólico, assim dá um tratamento especial aos significantes. O personagem troca ou questiona o emprego dos significantes, a exemplo: "por que cadeira chama cadeira e não sentador?", por lá também a criança questiona sua mãe  "por que esse tal de latim não botou na mesa nome de cadeira, na cadeira nome de parede, e na parede nome de bacalhau?".




As crianças em idade pré-escolar “explicam” o nome dos objetos pelos seus atributos, quando há uma profunda confusão entre palavra e coisa. O leitor do sistema de escrita alfabético precisa ser capaz de lidar com as características sonoras da palavra, de focalizar o significante e distingui-lo de seu referente, o que pode ser até muito divertido.


No primeiro estágio do realismo nominal lógico, com base apenas na memória, a criança é capaz de aprender os nomes das letras, as letras iniciais de muitas palavras, a emitir sons associados a certas letras ou mesmo a reconhecer muitas palavras ou sílabas.


Os objetivos das atividades realizadas com V.A., durante processo diagnóstico, visaram situar o nível de seu desenvolvimento, articulando pensamento simbólico e seu conhecimento lógico-matemático.

As atividades aplicadas foram as seguintes:

1. Atividade de Identificação
2. Realismo Nominal
3. Conservação de pequenos conjuntos discretos de elementos
4. Conservação da quantidade de matéria
5. Conservação da quantidade de líquido (transvasamento)
6. Conservação do número elementar

No próximo post, as provas piagetianas aplicadas.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Maneco Caneco Chapéu de Funil: leitura deliciosa para crianças de todas as idades

Camargo explora a fase em que a criança se encontra entre o período pré-operacional, quando a criança já distingue o significante (imagem, palavra ou símbolo) do significado (o objeto ausente) segundo Piaget, e o período operatório concreto. Leitura recomendável para trabalhar com crianças de 4 a 9 anos - até crianças de 109 anos.


Neste período a criança aprende naturalmente a manipular/explorar o objeto e passa a operar com símbolos, ou seja, aprende a reler objetos que ganham novos significados - funções exóticas, ou seja, é o caráter lúdico do pensamento simbólico, cujo formato nos fazem rir também. O novo efeito faz com que a criança e seus pares se divirtam, também porque estes resultados podem causar estranheza no adulto. A sua graça não está mais tão centrada em seus trejeitos, como quando era bebê de colo, a graça agora está muito mais naquilo que ela mesma produz, e reinventa significados.


Este algo inédito/original faz com que sinta o gosto da autoria, e se divirta, quando aprende em seu brinquedo a transformar o mundo (cheio de rotinas) de coisas definidas e aparentemente certinhas, exatas. Alguns adultos se questionados se inquietam. O caos criado ajuda a reorganizar a ordem.
Por que as coisas tem o nome que tem?
É Marcelo questionando seu pai, e desafiando a pensar junto...
O ato de recriar faz com que desfrute melhor o brinquedo e aprenda com ele a jogar. E é neste mundo de faz-de-conta que a criança passa a compreender melhor os significados sociais e a função das coisas.


Leia também outros livros de Luís Camargo, do mesmo gênero como: 


Site interessante sobre indicações de livros/leituras, clique por aqui.


CAMARGO, Luís. Maneco caneco chapéu de funil. 5 ed. São Paulo: Ática, 1987.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A Natureza do Número: objetos, relações, parcerias, intervenções e aprendizagem



O educador, para ser fiel ao espírito das matemáticas contemporâneas, deve considerar o pensamento matemático como um prolongamento das construções espontâneas da inteligência e recorrer, assim, aos ensinamentos da Psicologia tanto como da Lógica (...) O objeto do ensino da Matemática será sempre alcançar o rigor lógico e a compreensão de um formalismo suficiente. Somente a Psicologia está em condições de proporcionar aos pedagogos dados sobre o modo de conseguir, com maior segurança, este rigor e este formalismo. Nada prova que colocando o formalismo a princípio o encontramos ao final. Porém, os estragos de um pseudoformalismo por ser demasiado precoce, mostram os perigos de um método que ignora as leis do desenvolvimento mental. (Piaget apud Rangel, 1992)

Kamii discute as utilidades da pesquisa e da teoria de Piaget contribuindo para que o professor em sala de aula saiba propor o ensino de número. Um ensino que desenvolve a autonomia social, moral e intelectual do aluno, fazendo com que o aluno tenha uma maior consciência de si mesmo.

De forma breve enfocaremos a natureza do número da obra de Kamii, para melhor interpretarmos as respostas dos alunos, e criarmos um trabalho com os educadores da escola estadual de Mosqueiro (PA).

Como se inicia o processo de construção do número?

Esta pergunta nos fez acessar e redescobrir as fontes naturais de observação, e as abstrações empíricas e reflexivas. Tais ações nos possibilitam desconstruir o conceito de número. Para Rangel (1992), a Matemática deve priorizar a construção dos conceitos pela ação da criança, através de sua experimentação ativa, para posterior formalização destes conceitos através da linguagem. E segundo Piaget, suas experiências se dão no nível social e no nível físico. Enunciaremos aqui os três tipos de conhecimento:

- conhecimento físico, a criança entra em contato com um objeto e observa suas propriedades físicas (cor, tamanho, forma, peso, textura etc.);
- conhecimento social, a criança entra em contato com as convenções de um objeto, uma linguagem, ou seja, não existe razão física ou lógica que o justifique. Os conceitos lhe são ensinados através de transmissão social, como por exemplo, quando lhe ensinam a contar;
- conhecimento lógico-matemático, a criança entra em contato com mais de um objeto ou com conjuntos de objetos. Esse conhecimento se relaciona com as propriedades das ações e não apenas dos objetos, e por isso ela passa a coordenar relações entre os objetos (igual, diferente e mais).

As duas primeiras formas de conhecimento possuem fonte parcialmente externa ao indivíduo, mas que o terceiro é proveniente da criação do indivíduo, isto é, não é observável por só existir na cabeça da criança.

Nas relações entre conjuntos de objetos, os sujeitos observam que eles podem ter algo diferente ou algo em comum, ter algo a mais ou a menos que o outro. E o número provém dessas relações construídas, é algo criado mentalmente pelo sujeito.

O conhecimento é proveniente das experiências que o sujeito estabelece em seu meio. Como se constrói o conhecimento físico e lógico-matemático, já que o conhecimento social é transmitido arbitrariamente?

Através da abstração reflexiva e empírica, que são interdependentes.

- abstração empírica é quando a criança abstrai uma propriedade de um objeto e ignora as outras (cor, tamanho, forma, peso etc.);
- abstracão reflexiva é quando a criança relaciona diferentes objetos ou conjuntos, comparando suas diferenças e semelhanças.

Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
(...) eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
(Mario Quintana, do livro Canções)
Durante os estágios sensório-motor e pré-operacional (segundo a Teoria de Piaget, esses são os estágios iniciais do desenvolvimento humano, que estabelece os períodos de 0 a 3 anos e de 3 a 6 anos, respectivamente), a abstração reflexiva ocorre, dependentemente, da abstração empírica, a que advém dos processos de experimentação, ou seja, das relações dos objetos. Com o tempo ela transcorre sem depender da empírica, as experiências passam a ser formais, e a linguagem transmite e traduz os sinais operatórios.

A criança deve colocar todos os tipos de conteúdo (objetos, eventos e ações) dentro de todos os tipos de relações para chegar a construir o número.

Inicialmente, os números são aprendidos pela abstração empírica e à medida que a criança vai construindo relações entre conjuntos de objetos e figuras.

Para Piaget, o número é uma síntese de dois tipos de relações: a ordem e a inclusão hierárquica.

Antes de quantificar os objetos, as crianças colocam-nos em uma ordem. Esta organização pode ser feita espacial ou mentalmente. E para quantificar os objetos como um conjunto, as crianças os englobam, ou seja, colocam tais objetos em uma relação de inclusão hierárquica.

Referência
RANGEL, A. C. S. Educação matemática e a construção do número pela criança: uma experiência em diferentes contextos socioeconômicos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

Sobre o processo de estudar a aprendizagem a partir da matemática na educação infantil


A inquietação de saber o como as crianças aprendem a contar e a fazer contas na escola e como relacionam esses novos conhecimentos com aqueles que adquiridos dia a dia de suas relações culturais com o mundo físico e social, há muito nos incomodava. Constatamos certo distanciamento entre a matemática da escola e a matemática da vida.

A maior curiosidade é de verificar em nosso cotidiano que as crianças tem facilidades para aprender muito mais a matemática da educação infantil e do primeiro ano e encontram mais dificuldades em aprendê-la a partir do quarto ano (terceira série) do Ensino Fundamental.

Onde está o problema e até que ponto as crianças estão de fato aprendendo nas séries iniciais a matemática?

Ao entrar em contato com uma das obras de Kamii, que muito nos ajudou a pensar, provocou-nos o desejo de não só estudar pré-escolares, mas, principalmente, o desejo de contribuir com a prática de educadores dessa modalidade de ensino. Para isso necessitamos aventurar-nos a desconstruir o processo de escolarização, por onde também passamos, com esses docentes.

O Distrito de Mosqueiro (Belém-Pa), um lugar de praia de rio com ondas, foi onde localizamos o belo cenário vislumbrado a partir da escola estadual e de sua turma de 48 alunos, com idades de 5 a 6 anos.
Rios-mares com ondas e as muitas aprendizagens...
Uma pergunta pode demonstrar por vezes a curiosidade que alguém tem para descobrir algo, desvendar mistérios, desmistificar preconceitos. A pulsão do querer saber mais amplia o olhar com diferentes possibilidades de redescobrir as múltiplas relações que a vida cotidiana nos tem facilitado. Precisamos ser pretensiosos e buscar descobri-las.

A matemática ajuda o sujeito a pensar. A Educação Matemática busca traduzir o conhecimento entre saberes, quando aprendemos a exercitar o saber pensar.

A Teoria de Piaget implica tão somente em ensinar a matemática, como qualquer outra disciplina, em um contexto que inclua a habilidade de que a criança pense autônoma e criticamente, e de maneira a reconstruir a lógica. Para ele a autonomia da criança deve se dar em um ambiente aconchegante e provocador que encoraje o pensamento crítico e autônomo, e que indissociavelmente, estimule a autonomia social, moral e intelectual. Aqui acrescentamos a afetividade que libera a autonomia, própria de um ambiente humanizado e cidadão.

As relações humanas são por vezes caóticas, e o caos exige ordem e a necessária auto-organização. A matemática deve também se preocupar com o desenvolvimento humano, na prática de saber viver, criticar e reinventar cotidianos, para que o cidadão saiba fazer, reivindicando no estranhamento a aproximação, na acomodação o enfrentamento, que fazem-no superar, na constante busca da equilibração, desafios com saltos quânticos.

Aos poucos a matemática deixa de representar o papel de “bicho de sete cabeças”, culturalmente temido, e constitui-se como ferramenta que rediscute e desconstrói o número, a geometria, as medidas e as operações relacionadas.

Se a matemática é só para pessoas especiais, como o indivíduo/sujeito, cidadão desacreditado e comum, aprende a construir a própria capacidade de desvendar e recriar dispositivos semióticos, ao saber representar e traduzir necessidades, identificar novos problemas e indagações que se “apresentam” no cotidiano?

Aprender a pensar remete-nos à pergunta do como a escola tem possibilitado ao aluno construir o seu próprio pensamento. O aluno se percebe indivíduo (plural) e sujeito (singular)? Para obter respostas precisamos fazer perguntas para a ciência/matemática da escola.

Que opções estão sendo disponibilizadas?
Que escolhas o sujeito tem conscientemente feito?
Que matemática faz parte do nosso processo de escolarização?
Que discurso incorporamos e consequentemente repassamos?
Que verdades e realidades perpassam na escola?

Acreditamos na iniciação científica de escolares da educação infantil. O espírito científico e o processo propedêutico atendem às intenções de buscar re-ligar o pensamento pela não fragmentação do conhecimento. Consideramos ainda o conceito de alteridade, com respeito às diversidades culturais, à complexidade de relações e à pluralidade de ideias e pensamentos. Reconsideramos a subjetividade quando o sujeito se vê nos processos interacionais. É indivíduo e sujeito.

Tanto na escola como na vida, deve se aprender a ouvir e a sentir o outro, sem inibir a própria fala, para isso é preciso saber ocupar espaços, investindo na autonomia do pensamento, na liberdade de exercitar o poder, o erro e o medo e aceitar desafios.

Também se aprende com a insegurança do caos, a dificuldade de enfrentar críticas, a alegria das descobertas, a dúvida das certezas, a aventura de lançar-se ao desconhecido, a incerteza da negação, a coragem de se dispor ao outro, o querer mais viver e aprender.

Quem é a criança da pré-escola? Quem é o seu professor? Que escola pública forma o contexto da educação brasileira? Que tipo de representações ilustram a nossa Região Norte? Que imaginário social possuem os representantes da Amazônia paraense? Qual a cultura do cidadão que habita a capital paraense? Quem são os ribeirinhos, pescadores, caseiros, comerciantes, artesões, funcionários públicos e desempregados que circulam e sobrevivem na Ilha de Mosqueiro? Que currículo está sendo viabilizado nas escolas públicas desse local? O que e como as crianças aprendem?

Mais perguntas precisam ser feitas para que essas crianças tenham prazer de matematizar a sua realidade na escola, com dados significativos, e não apenas sobrevivam à matemática temida.

Como fazer com que os professores dessas crianças gostem e redescubram a matemática e o prazer de aprender e ensinar? Segundo Freire (1998, p. 25), “ensinar é a melhor forma de aprender”. Por aqui se sinaliza o desejo de se aproximar do educador e ajudá-lo a repensar o significado da matemática em seu dia-a-dia.

Para isso se faz uso das oportunidades epistêmicas vividas na didática dos jogos matemáticos. É uma forma de melhor perceber o potencial do aluno, e a sua capacidade de pensar e de comunicar o pensamento. Esses exercícios efetivamente colocam o aluno diariamente em interação com seus pares e professora. O desenvolvimento da autonomia dá à criança o poder de saber buscar, porque estimula construtivamente a sua ousadia e sua autoconfiança. Sem esquecer da construção da beleza de sua corporeidade também pelo conceito de alteridade.

Os jogos aplicados proporcionaram a aproximação entre experimentadores e alunos possibilitando melhor circulação de conhecimentos, entre eles e os professores da escola pública escolhida, buscando facilitar a interlocução de percepções, problemas, questionamentos, idéias e sabedorias.

Resolvemos mudar o termo experimentador para o de problematizador, para nós vai além do significado de facilitador, porque vimos tanto a necessidade de nos aproximarmos do aluno e da escola, dialogarmos com eles, sermos mediadores do conhecimento que representamos, mas que de repente aprendemos com eles, sujeitos de interlocução. Temos consciência de que podemos redescobrir novos significados porque aprendemos a teorizar a própria prática, que singularmente nos dispomos a conhecer.

Responder perguntas e provocar outras no exercício da filosofia que é o de problematizar o conhecimento, ressignificar e popularizar a ciência, para que ela não estacione e não seja apenas para alguns sujeitos que se consideram privilegiados. Isto porque percebemo-nos capazes de também interrogar e aprender, e de exercitarmos e nos deliciarmos com a pesquisa e a sabedoria de aprender a aprender, advindas da troca interativa que nos propomos. Vale descobrir problemas e socializar os questionamentos que a vida pulsa e proporciona, desafiando-nos à exposição, à demonstração e à busca de soluções, ensaios e motivos para não desistir de viver.

As perguntas sempre abrem novos caminhos, as respostas, inversamente, indicam uma caminhada já percorrida. Que aprendamos em nossa vida cotidiana a sempre fazer perguntas. E que surjam outras mais.


A ciência progride porque tem regras de jogo, que dizem respeito à verificação empírica e lógica (...) a ciência estabelece um comércio particular com a realidade do mundo dos fenômenos, sua verdade, enquanto ciência, não reside em suas teorias, mas nas regras do jogo da verdade e do erro (Morin, 1998).




Referências
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. 9 ed. São Paulo: Paz e Terra 1998.
MORIN, E. Ciência com consciência. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.





Educação Matemática e Psicopedagogia: estudos feitos com crianças de 6 anos a partir da releitura de Kamii


Eu com os sujeitos da pesquisa, à esquerda, à direita acima com a professora
em sua casa, e à direita abaixo com a turma das crianças colaboradoras.

Saber como a criança aprende é uma questão de aprendermos com ela. Em minha conclusão após feito trabalho de investigação do conhecimento matemático de crianças de uma escola pública em 1999, durante curso de psicopedagogia, senti vontade de reler “Na vida dez na escola zero”, de Terezinha Carraher e David Carraher. E também concordo com Bachelard (1996, p.20), a partir da necessidade reconhecida que os cursos de formação necessitam aperfeiçoar seus currículos nas aprendizagens e não somente nas ensinagens, pois, segundo ele “uma cabeça bem feita é infelizmente uma cabeça fechada. É um produto de escola”. Lógico que nos inquieta um bocado porque estamos mergulhados e somos apaixonados por escolas, mas, também temos consciência da realidade necessária de se investir em formação continuada e práxis pedagógica.

Após decisão de construir um trabalho de interlocução com uma instituição pública da rede estadual de ensino do distrito de Mosqueiro (PA), e em parceria, com uma colega do curso de especialização passamos a combinar e discutir sobre as formas de aproximação, estudo e dialogias com a escola, enfim, com o projeto de trabalho.

A leitura de Kamii nos possibilitou dialogar com alunos e professora da Educação Infantil. Particularmente, eu já conhecia algumas das obras de Kamii, como também já fazia algum tempo que vinha dialogando com o processo de construção do conhecimento de crianças de Educação Infantil. Trabalhei durante cinco anos com esta modalidade de ensino como professora, e mais dois anos como coordenadora regional de Educação Infantil da Secretaria de Educação do Estado do Paraná.

Também tive muito prazer de servir como mediadora nesta nova parceria, afinal era o primeiro contato da colega com essa teoria, mas, sempre é uma nova oportunidade de aprender mais com o outro, com a sua forma de ver o mundo e através dela compreender as suas novas perguntas e a sua forma de aprender misturada por ali entre aprendentes. Os novos questionamentos sempre nos abrem perspectivas de pesquisa e ação.

Nessa práxis buscamos construir bem mais a aproximação com os educadores e os alunos da escola, além de toda comunidade escolar. Com o acesso facilitado possibilitamos a todos nós, bons motivos para novas aprendizagens.

A partir dessa introdução postarei conteúdo trabalhado.

Referências

BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.
CARRAHER, T.; CARRAHER, D.; SCHLIEMANN, A. Na vida dez, na escola zero. 10 ed. São Paulo: Cortez, 1995.
KAMII, C. A criança e o número: implicações educacionais da Teoria de Piaget para a atuação junto a escolares de 4 a 6 anos. 5 ed. Campinas: Papirus, 1986.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Se o aluno aprende...

Investir em um processo de trabalho educativo e escolar significa aprender a lidar com as diferenças, as resistências, o oposicionismo, o determinismo de pedagogias legalistas, com temor do outro, com a descrença, com a desavença, com indisposições, com apatias, com autoritarismo, com as incertezas e imprevisibilidades, mas, também com lideranças talentosas, destemidas, criativas, críticas sinceras, competentes e comprometidas com as aprendizagens dos alunos. Segundo Pedro Demo (1996), a diferença essencial tem a ver com a garantia da aprendizagem dos alunos, essa é a hipótese central da nossa Escola, pois, para ele, “tudo vale a pena, se o aluno aprende. E cabe o reverso: nada vale a pena, se o aluno não obtiver desempenho adequado”.