quarta-feira, 28 de julho de 2010

Remanescências urbanas: hinos maviosos à vida

Canto dos pássaros entre espaços urbanos a nos acordar da rotina e nos levar ao cotidiano de um novo dia. Quantas rotinas despertam juntas? Quantos diários conseguem ver a luz que banha a cada manhã a ressurgir na vastidão de nossa atmosfera terrestre. Assim despertei relacionando e ressignificando:

O canto ouvido: à consciência deste meu analfabetismo, afinal, quais e quantos pássaros estavam na entoada de suas prosas matutinas nos telhados, porém, de cujo despertar hoje me ative? consequências das inconsciências que permeiam nossos afazeres e atribulações? quais e tantas e ao relento da saúde? insensibilidade ‘adulta’?

Belo despertar da ignorância circundante! Escolhas urbanas ou cercanias dos saberes de visão fragmentada, de razão lancinante... pela busca da inteireza de ser humano, decisão necessária pela vida, deixar-se acordar aos sons das aves que aqui gorjeiam.

Outras relações, pois, memórias pulavam na cama:

a) as vozes dos anjos:
- como superego dos pássaros, entoando juntas.

b) os sentidos:
- evocações da infância – pássaros-anjos – mundo mágico, sem efeitos alucinógenos, surgindo no vento a resvalar em folhas, deslizantes ou rodopiantes, pelo chão; do céu a chuva benfazeja, promesseira, temerosa com raios e trovões ou brincalhona a preencher as folhas da imaginação ou a empurrar barcos de papel em pequeninos córregos acidentais nos meios-fios ou em sulcos no solo.

c) sensações:
- cheiros das árvores circundantes inscreviam as letras de meu mundo, vicejando palavras que habitaram meus primeiros cadernos e moldavam o lápis de minhas escrituras ou emolduravam as minas que coloriam aspectos figurativos de meus símbolos de vida.
- sons advinham dos passos das formigas carregando folhinhas, cumprimentando colegas, indicando atalhos de seus tesouros de verão e adentravam cavernas dentre brechas dos tijolos antigos a sustentar o muro de casa.

E no acordar dessas harmonias fiquei a pensar sobre o que sentem as diferentes gentes que habitam as diferentes casas por aqui e bem acolá. E as condições panorâmicas e poéticas vividas e percebidas por aquelas que moram em condições insalubres de assentamentos, como as típicas palafitas de áreas de várzeas da periferia urbana, ainda andam sobre estivas e até tomam banho nessas águas.

- Como os pássaros lá e noutros lugares encantam as infâncias e entoam melodias matinais?

Se acostumei-me a acordar automatizada por compromissos e responsabilidades e desacostumei-me dos sons da natureza que antes me embalavam, e mais uma vez as instâncias da memória semântica me acordaram aqui, porém, espero que por lá, a alegria entoe nessa mágica dos cantos. Talvez as persistências dos cantos evoquem outros ouvidos moucos e assim novas esperanças e atitudes necessárias ressurjam desacomodando borbulhas, pruridos, desconfortos e valorando a vida diária que a todos nós agracia e acolhe.

Essa é a mensagem dos pássaros desta manhã! A estética na ética da vida. Mundo globalizado, com espaços marginais desalinhados, assim, a estetização da vida persiste em despertar o grau zero da vida logo nos primeiros raios da manhã, concertados pelas aves, que emergem na singularidade desse discurso, permitindo vôo e revôo de tempos, porquanto, tempus fugit.

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Imagem 3: arquivo pessoal
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domingo, 25 de julho de 2010

Sempre ao seu lado: aprendizado sobre lealdade

Ontem à noite tive que me render aos apelos de minhas duas filhas para assistir ao filme ”Sempre ao seu lado”, que vinham me solicitando há mais de dois meses atrás. Afinal, locaram e compraram uma pizza e assistimos em família, acompanhados ainda pelos nossos quatro “dachshund”. Narra o filme sobre a história real de uma amizade entre um homem e um cachorro, no Japão do começo do século XX. Em boas passagens olhamos com os olhos do cachorro, é a extensão possibilitada pelo cinema... perspectiva inconteste a nos recolocar no lugar de “melhor amigo do cachorro”.

Qual é o significado dessa palavra para nós? A família e o amor que construímos a quatro e agora podemos dizer que a oito (rsrsrs!).

Qual é o sentimento que tive após o filme? Tristeza, mas, que tristeza é essa? Alegria, que alegria é essa? Talvez, um sentimento sem nome, à procura...

Fiquei a procurar sentidos tão fortes para significar o que se passava em mim até há pouco. E só me lembrei de Marcel Proust e de que preciso ler mais a sua obra. Mas, de tanto ouvir e ler em estudos no "Mídias na Educação - MEC" e, em Benedito Nunes, acerca do escritor francês, como sendo a clave do poético a nos ajudar a aprender o segredo da escrita, a entender que o verdadeiro desponta do imaginário e nesse movimento espiralado a descobrir e reinventar a expressividade da palavra.

Pois é, nesse ponto também fiz conexão com McLuhan, a entender o significado do cinema, do rádio e da mídia em si, quando nos diz que “os meios de comunicação são extensões do homem”. Os nossos sentimentos e emoções se identificam, se remexem e não são mais os mesmos após essa interação. Segundo ele, os óculos são extensões do olho, a roupa é uma extensão da pele, a roda do carro ou da bicicleta é uma extensão do pé, as armas dos braços e pernas. O que criamos é uma extensão nossa. A espécie humana que faz parte da natureza, tudo por aqui e no multiverso é extensão divina. Somos imagens e semelhança.

Segundo McLuhan, “a rádio é uma extensão do ouvido (...) o ouvido vê com o olho interior, esse a que chamamos imaginação. Os olhos do rosto podem estar fechados. O terceiro, da mente, segue bem aberto e espera que os outros sentidos, especialmente a audição, o estimulem”.

Depois desse belo presente de minhas filhas e esposo, assim que assisti ao filme senti que pode fazer muito efeito com nossos alunos e alunas, em um tempo de muita violência que clama por proximidades, afetos e abraços, amores que transcendem e nos reafirmam humanos amorosos. E nós em casa estamos mais unidos ainda e amando nossos salsichinhas que tanto nos reconhecem como amigos verdadeiros.

Sobre o filme, se você já assistiu sabe do que estou falando, caso contrário vale a pena locar ou comprar, para mim será uma aquisição valiosa, intensa. A cidadela, já na época, resolveu colocar uma estátua no lugar onde o cachorro fica à espera de seu amigo na caminhada diária ao trabalho.

- Qual foi e tem sido o significado desta história real àquele lugar planetário? Acabou sendo incorporada ao folclore urbano japonês.

O protagonista humano era professor de Artes, da Universidade de Tóquio, dentre tantos afetos, tentava ensinar seu cachorro a apanhar a bolinha que jogava. O cachorro passou a se chamar ”Hachi”, pelo símbolo que trazia em sua coleira, representando o numeral oito, em japonês, algo muito especial, por simbolizar a ligação entre os planos terrenos e espirituais.

É o significado do filme, amizade, lealdade... que sentimentos são esses?


Referências
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. 10 ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
NUNES, Benedito. Asas da palavra. Belém: Unama, v.12, n.25, 2009. Semestral. (edição comemorativa).


Imagem 1: http://cafenatiffanys.files.wordpress.com/2010/01/poster_sempre-ao-seu-lado_21.jpg
Imagem 2: http://image.blog.livedoor.jp/takekan/imgs/7/3/73068ba1.jpeg
Imagem 3: http://lh4.ggpht.com/_qv11LcCmFS4/S7ucoQoXk0I/AAAAAAAAAyo/23r7nYHJhUE/image_thumb%5B2%5D.png?imgmax=800

sábado, 17 de julho de 2010

O filho que eu queria ter

Mês de julho, mês de férias, mês de histórias e releituras...

Se me perguntassem o que eu deixei de realizar nesta vida, diria o sonho a que me conduziu Janet Miriam Holland Taylor Caldwell (1900-1985), escritora britânica, em suas linhas viajantes, de luta, curas e amor pelo deus desconhecido, de “O médico de homens e de almas” (Dear and Glorius Physycian). Obra que é fruto de uma pesquisa de quarenta e seis anos sobre a vida de Lucano, ou, simplesmente Lucas, o único apóstolo não judeu, jamais chegou a ver Cristo e teve muito em comum com Paulo, acreditava que Jesus viera não apenas para os judeus, mas, também para os gentios. Admirei-me pelo tempo em que Caldwell, antes mesmo de seus doze anos de idade, dedicou-se aos estudos, leituras e entrevistas, em busca de tornar a história mais fidedigna, e como ela, passei a amar e a querer saber mais de São Lucas muito jovem.

A história de Lucano, bem diferente de Tomé, sem precisar ver para crer, é a da peregrinação de todos os homens através do desespero e das trevas da vida, do sofrimento e angústia, da amargura e tristeza, da dúvida e do cinismo, da rebelião e desesperança até os pés e a compreensão de Deus. Entrevistou Maria e antes mesmo tudo vinha mudando. Ouvia, sentia e a tudo escrevia.
Adoro ler a passagem quando Lucano com a Mãe de Jesus, em sua casa, registra passagens do nascimento, do bercinho feito por José, das “uvas grandes e redondas, ambarinas, com riscos vermelhos e roxos, reluzentes como pedras preciosas, de suco tépido e doce”, capaz de acalmar a sede e lhe dar mais vida, dos móveis da casa feitos por quem criou as galáxias, as constelações e os sóis, mas, soube aplainar as madeiras para que a cama e a mesa brilhassem como a seda. E com tanto orgulho como criou as Plêiades... Mas, o mais espetacular é ler os relatos de Maria sobre o bebê, o menino, o jovem e o homem que Ele foi nos momentos que esteve na Terra, e a lhe serenar com os olhos, mesmo em meio a maior tempestade advinda dos emaranhados humanos da turba. Era-lhe um menino forte, vigoroso, mas muitas vezes silencioso, que de súbito ficava imóvel no meio de seus brinquedos...

Uma das passagens emocionantes e fortes é quando Ela seguiu Jesus, aos quatorze anos de idade, e não sabia o motivo. Ele vestia uma roupa branca que ela mesma fiara e costurara. Logo, Ele parou feito uma estátua contra uma paisagem fulgurante. Não se movia e esperava. Cena de respeitoso temor: surge flamejante fogo fosco. Em seguida, não mais estava sozinho.


“Um grande anjo escuro, alto e majestoso, estava diante Dele, e eu senti que aquele anjo era só maldade, embora tivesse um rosto sombriamente belo (...) ele e meu Filho contemplavam-se mutuamente, em silêncio, e meu coração estremeceu de terror, ao vê-los assim se defrontando. Falaram? Não sei. (...) Meu Filho era muito jovem, mas alto e ereto, e não mostrava receio diante do terrível anjo de rosto belo, que era sarcástico e cheio de orgulho”. (Caldwell, 2004, p.667).

Segue-se aí, e por todo o livro, a narração amena, instrutiva e cheia de ternura. Inscreve-se interessantes episódios da história da humanidade antiga quando os césares eram imperadores e senhores do mundo, com importantes passagens sobre a mitologia greco-romana. Lucano dedicou estudo bem além das coisas visíveis, terrenas e humanas, ressaltou também diferenças profundas entre a aristocracia dominante e os marginalizados, pelos quais se condoia e se solidarizava.

Diante das distorções sociais, Lucano não compreendia porque o Deus desconhecido permitia a pobreza entre os homens, as doenças e os sofrimentos e por isso passou a perseguir Deus e a Morte. Queria salvar todos da morte e assim acreditava estar lutando contra Deus. Suas intervenções pareciam milagres, curou leprosos e outros males pela medicina, eliminou a peste de um galeão até Roma, com vocação profunda na recuperação da saúde, acreditava estar agindo contra o “deus desconhecido” dos judeus, gregos ou romanos: o único que era bom, justo e tão diferente dos outros deuses cheios de vícios, ódios e paixões. Pelo menos haviam lhe contado quando criança e eventualmente passou a desacreditar.

Conheceu Pôncio Pilatos, ouviu Tiago, João e Maria. Escreveu as mais fieis e belas páginas da crucifixão de Nosso Senhor ao lado de páginas dos outros evangelistas, sobre a cruzada 'gloriosa' de Cristo. Caldwell retrata as injustiças, a prepotência dos dominadores que fazem “a classe média ser esmagada até a morte sob taxas, extorsões e explorações que desde Roma, do império ainda vicejam”. O que isto tem a ver conosco na atualidade?

A leitura de “O médico de homens e de almas”, nos tonifica o espírito, é terapêutica! Independente de religião, como fruto de pesquisa, nos traz a lição de vida de São Lucas, apanágio da obstinação. Mostra-nos desde sua infância, amores e juventude, alegrias e frustrações, a decorrente e paradoxa perseguição contra Deus, e como para Saulo de Tarso, manifesta uma fé cheia de renúncia e dedicação.

Ganhei este livro de meu esposo, aos quatorze anos de idade, e assim prometemos, em 1977, que o nosso primeiro filho seria batizado por Lucas. Mas, o “destino” nos fez ter duas lindas meninas, Lorena e Lígia. Hoje com 29 e 26 anos. E eu continuo apaixonada pelo livro. Muitos outros se seguiram, destaco as histórias de Francisco de Assis, de José e Paulo de Tarso. Mas, continuo fascinada pela pesquisa de Taylor Caldwell. De tanto comentar e emprestar acabei ficando sem o livro, comprei outro em 2004, em uma nova encadernação.

Findo aqui com trechos do encontro de Lucas e Maria. Assim, homenageio a cor de fundo do meu blog, é a minha preferida.
Enquanto seu cavalo subia colina pedregosa, Lucano olhava para trás, para o mar, e pensava que só no Paraíso devia existir paz assim, vasta e azul tranqüilidade, tão envolvente calma. (...) Estou procurando Maria, a Mãe de Jesus, senhora (...) fiz uma longa viagem para falar com ela (...) viu pelo reflexo da luz, que era jovem e flexível, vestida com um tecido barato, azul-escuro, e usando véu branco. Enquanto ia subindo os degraus, o rosto levantou-se para o médico, e ele percebeu que a mulher era extremamente bela, de faces lisas e pálidas adelgaçando-se no queixo onde havia uma covinha. Tinha o nariz delicado, os lábios de um rosa suave e os olhos azuis mais encantadores que o médico já vira. Um caracol de cabelo dourado escapara de seu véu. Seu corpo e sua esbeltez eram os de uma jovenzinha, e seus pés, descalços, muito brancos. (...) Sou eu. Maria devia ter agora uns quarenta e oito anos (...) Contudo, olhando-a, ele percebeu que ela sofria uma sutil modificação, tornava-se mais velha, enchia-se de desgosto e tristeza, curvava-se um pouco. Então, de novo, estava misteriosamente jovem e ereta, calma como uma estátua, com a fronte lisa e branca”.Referências
CALDWELL, Taylor. Médico de homens e de almas: a história de São Lucas. 35 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Imagem 1: http://leonardosodre.blogspot.com/2010_03_01_archive.html

Imagem 2: http://portalveritas.blogspot.com/2009/01/evangelho-de-lucas.html
Imagem 3: http://www.sebodomessias.com.br/loja/imagens/produtos/produtos/281863_850.jpg

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O que nos move a escrever? fluidos, permeabilidades e reentrâncias


Leitura de mundo, leitura de vida, leitura de si.

O que faz com que alunos – crianças, jovens ou adultos - não escrevam? O que dificulta o escrever em situações que exigem o pensar por escrito? Pode estar relacionado tanto à forma como ao conteúdo ou ainda com a dificuldade de saber lidar com a pressão social, as próprias expectativas, o medo, a frustração, a estima de si mesmo.

Gosto de ler Vygotsky nestas horas que percebo o bloqueio diante de uma folha em branco com lápis ou caneta, ou diante de uma tela, teclado, corpo, mãos e a ponta dos dedos entrelaçados, suados... “Ele” me diz assim que podemos “desenhar, além de coisas, também a fala” (Vygotsky, 1988, p. 131).

Mas, o que é o desenho? A nossa forma de olhar, tocar, sentir, lembrar, perceber e representar o objeto que está a nossa frente? É o objeto em si? Ou é a forma como vivenciamos o tal objeto em um determinado momento e ali expressamos nosso saber-sentir-dizer? Quem viu de forma diferente e prestigiada esse objeto? Saímos em busca de olhares melhores para dizer sobre a percepção de ver a coisa? A inspiração vem das necessidades de sermos também queridos e aplaudidos? Talvez tradução simultânea? Mas, esquecemos de que precisamos sentir e tentar dizer primeiro sobre o que estamos vendo e como representar com os recursos ao nosso alcance e recolocar simplesmente nossos sentimentos, emoções, inquietações, perspectivas e tanta coisa que o momento representa. Descentramos e por vezes nos esquecemos.

O que é o desenho da escrita? A fala escondida, silenciada, inconsciente, pincelada, escorregadia, secretada, aberta, publicável, aceita, feliz, vibrante, chorosa, desperta, ressignificada, sublimada, gritante, desafiadora, irônica, ponderada... Em que momento estamos? Em que momento está nosso aluno? Que lembranças acumulamos dos atos de escrita?

A linguagem escrita possibilita que se simbolizem símbolos – as palavras, as falas – ali no suporte da escrita representada, e no limite máximo, ocorre a transformação de processos intrapsicológicos em processos interpsicológicos combinado à lógica cheia de sequências, organização e processos estruturais a remodelar a fluência e a fruição. A técnica ajuda a poetizar a vida, as emoções e o conhecimento.

Lembro estar em uma cadeira olhando uma parte de um tronco de uma (ex)árvore colocado no meio de uma mesa e bem no centro de uma sala, lá também estavam outros colegas em suas cadeiras. Cada um de nós olhava aquele tronco e ali no papel deveria desenhar a parte que olhava do tronco. Que lápis era aquele? Tinha alguém que ficou na mesma posição que eu e já tinha desenhado algo bastante interessante? Como representar as entrâncias e reentrâncias do tronco, as cores e as luzes que iluminavam parte dele e que me cegavam outras tantas, queria chegar mais perto e tocar, não podia, tinha eu que sentir à distância e pesquisar nas minhas memórias do tocar... Quem impedia? Não sei, não lembro, mas a mesinha parecia me impedir. As texturas saíram, os círculos concêntricos, as espirais, as paralelas, as diagonais, as imagens secretas, fui me experimentando naquele novo dizer. Boas experimentações de mim.

E as redações, os pensamentos dos alunos e as suas formas de dizer lhes são tão desafiantes como aquele tronco me significou em um dado tempo? Preocupam-se com a forma de como fazer com o lápis ou caneta, o conforto da cadeira, a iluminação inadequada, o desalinho do tronco, o conteúdo curricular ou com o objeto em si; com os condicionantes sociais da aprovação ou reprovação, a ironia dos colegas; com a sua própria forma de ver, representar, descobrir-se, arriscar; com a pressão externa, com os problemas que surgem quando algo perde a graça, o encantamento...

Ilustrando essa passagem, encontrei nas palavras de Zeca Baleiro, um pouco desse complexo querer dizer rascunhado em papel: "Eu não sei dizer, O que quer dizer, O que vou dizer". O inconsciente se mistura ao eu consciente e tudo consiste nesse mistério que somos. Segundo Barthes, "o texto é uma textura, uma tecelagem artesanal”, assim como naquele esboço me preocupava em como representar a textura do tronco, tive que fazer algumas rupturas como deixar de lado a vontade de desistir do papel, o “prazer do escritor é diferente do prazer do leitor", a percepção do professor é diferente da percepção do aluno, uma cadeira, o ângulo e o desenho originaram os fazeres... Reinventamo-nos nesse dizer. Somos releituras criativas!!

O que nos move a aceitar os desafios de escrever?

Recorro à proto-escrita para entender melhor esse processo, assim entendo essa passagem de minha memória aprendente quando tentava desenhar o tronco da ex-árvore em cima da mesa, o “desenho” estava além de uma «escrita visual», pois, emaranhava-se em uma rede «hipertextual», de retas indefinidas e com «ligações» múltiplas. Ali experimentava eu uma proto-escrita, mensagem não-codificada, de arquivos, sensações, significados, sentidos, expressos, impressos, relacionados, interativos, dispositivos abertos para pesquisas de si mesmo, de gente como eu ou em situações bem diferenciadas...

A proto-escrita, sustenta Derrida (2002), é invocada pelos temas da arbitrariedade do signo e da diferença, assim elimina-se a metafísica da presença, afasta-se do objeto corpóreo de seu significado. O pedaço da árvore morta ali estava em uma face original no meu papel. Eram os riscos da autoria, de quem se permite rascunhar se achando o último desenhista a desenhar, sem medo de receber a “vaia” da platéia. Consegui representar, pelo menos para mim o desafio aceito teve resultado. Senti-me capaz. Depois ouvi os requisitos técnicos para aperfeiçoar o traçado. A crítica me ajudou a reconstruir o feito. Não a apagá-lo, mas, perceber o desenvolvimento possível e desejável. Entendi o que é construir competência.

Deixo abaixo a apresentação de “Lenha”, composição de Zeca Balero:






Repete-se o que ouve ou se assiste, sem parar para analisar e emitir a própria opinião, ensaiar a própria escrita? Instiga-nos à superação Barthes (2004, p. 51), pois, segundo ele: "a forma bastarda da cultura de massa é a repetição vergonhosa: repetem-se os conteúdos, os esquemas ideológicos, a obliteração das contradições, mas variam-se as formas superficiais. Há sempre livros, emissões, filmes novos, ocorrências diversas, mas é sempre o mesmo sentido". O que estamos sentindo? O que percebemos? Como vencemos o medo de errar?

- Como vão os ensaios de escrita? Cheios de proto-escritas mediatizadas?


Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
DERRIDA, JACQUES. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002.
VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Imagem 1: http://portuguese.cri.cn/mmsource/images/2007/06/20/yanhua1.jpg