quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Natal: desenhos e histórias de crianças

José Saramago escreve sobre o imaginário das crianças acerca do Natal, cuja motivação é regida pela professora delas, mas, que surpreende a todos. 


"Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou os seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: “Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aquarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira”. Uns com lápis, outros com aquarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam.

Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Por quê?

“Por quê?”, pergunta a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trêmula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegamos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”.

NEVE PRETA, um história de Natal.
José Saramago, Deste Mundo e do Outro, 1971.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Presença das estrelas: consoantes e vogais da vida

O silêncio é memória viva. O que calo. O que falo. O que há de silêncio em mim. O que há de silêncio no outro. O que se combina no silêncio. (In)Coerência situada. No olhar, na costa, na beira, na distância, na brecha, nos intervalos, na ausência, na falta. O que ouço. O que grito. O que não ouso falar. Adormeço. Esqueço. Não lembro. O que ignoro. Não percebo. Nem desconfio. Cismo. Sino. Busco. Abro mão. Enclausuro. Rubro. Enraiveço. Silencio. Guardo. Me esqueço. Misturo. Transpasso. E sorrio. Sou cúmplice. Até sem saber. Sou Debret. No espelho de sua observação. Sou Monet. No pontilhismo. Sou Van Gogh. No vigor do impressionismo. Adiante. Na grita do fauvismo. Como Carlitos. Flutuo na graça. Antropofagias. Sou mulher. Revivo e Transformo. Condição Feminina. Sou mãe. Sou avó. Enamoro. Reconheço certos silêncios. No melhor ou pior. Indigno-me. Ilha e Continente. Densidade. Singeleza. Reinvento. Reedito o sorriso. Sobrevivo. Marcadores múltiplos. Digitais vividas, percebidas, concebidas. Apagadas ou desgastadas. Óbvias ou inconscientes. A beleza. Inebria. O amor. Nos envolve. A caridade. Nos move. A fraternidade. Nos liga. A vida. Nos responsabiliza. O afeto. Nos une. O silêncio nos pluraliza. Algo singular. A ferida grita. A fera acorda. A cura nos democratiza. Pulsão. Polidez. Arte de viver. Acordados. Adormecidos. Vivos na memória. Despertados. Revolução. Silenciosa ou Amorosa. Religação. Transformação. Ser feliz. Sê feliz. Amorosidade. É a condição feminina. Condição animada. Citadina. Marcadores relacionais. Intuitivos. Projetivos. Resilientes. Existo. Sinto. Novos silêncios. Velares. Consoantes. Prossigo. É o caminhar. Ah! as vogais da vida.


“Se as coisas são inatingíveis...ora/ Não é motivo para não querê-las.../ Que tristes os caminhos, se não fora/ A mágica presença das estrelas”. Mario Quintana, em Das utopias (1951).