sábado, 20 de agosto de 2011

Açaí e sua rede de conhecimento no mundo da palavra: alfabetizar-se na cultura da escola


O singular e o plural / O sujeito e o objeto
se misturam, como nesta obra de
 minha cunhada Miriam Gonçalves

Alguns equívocos de se trabalhar a palavra gera exaustão na criança, no alfabetizando. O professor desconhece o que Vygotsky chama de aprendizagem e desenvolvimento. Como uma criança aprende? Como um sujeito aprende depois de ter feito etapas mal feitas em sua escolarização?

Paulo Freire nos apresenta a palavramundo quando reitera por vezes que a palavra mundo precede a palavra da criança, ou seja, “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”. E que para Vygotsky (1991, p. 132) “uma palavra é um microcosmo da consciência humana”, por isso nos mostra que a palavra está na criança e em sua rede de significados, a qual reinventa sentidos ao bel prazer e para nosso deleite. Vamos aproveitar e também debulhar a palavra, pois, Sônia Kramer diz que a palavra precisa ser trabalhada logo em seguida. Código e Sentido juntos debulhados e enredados.

E falando de nosso ou de outros microcosmos...

Lembra da tagarelice de Emília quando fazia a sua “reforma da natureza”? A danada aproveitou que Dona Benta e todo o pessoal do sítio foram chamados para reformar o mundo na Conferência da Paz (Paris, 1919), que ocorreu logo ao final da Primeira Guerra (1914-1918). Lá se buscava reescrever um tratado a partir do depoimento dela com a Tia Nastácia. Afinal, as duas mulheres sabiam como melhor governar a paz e a alegria do sítio através de sua Humanidade e Bom Senso - admirava-se o Duque de Windsor lá "pelas zoropas" e pra banda da Inglaterra. Pois é, as duas tinham o Visconde como consultor científico.

Noventaequatropéia e o espanto das gentes.
Monteiro Lobato e a Reforma da Emília
E lá pelo Sítio, sósórósósó a Emília foi aprontando, mas, orientava os bichos a ajudá-la a fazer uma outra reforma e bem diferente de tentar modificar a humanidade, mas, não esquecia da natureza humana em todo rebuliço, e olha lá um olho no pé e bem no “mingo” para evitar tropeços nas pedras, espinhos e estrepes. Assim deixou Emília, os ditadores com as mulheres do sítio de bom senso, munidas de belo espírito prático e tão cuidadosas de tudo, porque arretada do jeito que era, faria ela, a boneca de pano, um grande escândalo internacional.

Tênia Emília, com a ajuda de sua amiga rã, e no laboratório oco de uma árvore foi criando o passarinho-ninho, a noventaequatropéia, o livro comestível, o porco magro, o sei-lá-que-animal-é-esse, o bule que apita, o pernilongo cantor, a gaiola de cabelo, as pulgas moles e paradas no meio do ar, as moscas sem asas, a reforma na vaca mocha, a reforma na personalidade das borboletas azuis. E seus tantos enxertos in anima vile em formiga, grilo, minhoca, pulga e centopéia reaproveitando aulas sobre glândulas e outras fisiologias...

Depois, bem foi ela mexer com “O espanto das gentes”...

Quantas crianças por aí afora não realizam seus experimentos, inclusive questionando e reinventando palavras como é o tal do “biriquitote xefra”, do Marcelo Marmelo Martelo da Ruth Rocha.

Cada aluno que chega, traz consigo a vontade de encontrar os seus colegas, de brincar, de “aprender muitas coisas”, de reinventar coisas e palavras tais, enfim, percebemos que o afeto medeia as atividades, influenciados pelo mundo interior e exterior. Não se pode separar o sujeito de seu objeto, há ali influências mútuas, conhecimento adquire dimensão de autoconhecimento, a formação da consciência crítica é primeiro passo de toda proposta emancipatória. O que seria uma reinvenção?

Giroux e Freire pensam na perspectiva de currículo que conteste os modelos puramente técnicos, segundo Silva (1999, p. 55), “a concepção libertadora de educação de Paulo Freire e sua noção de ação cultural forneciam-lhe as bases para o desenvolvimento de um currículo e de uma pedagogia que apontavam para possibilidades que estavam ausentes nas teorias críticas da reprodução então predominantes”.

Nada de exaurir a criança ao be-a-bá sem sentido, reproduzindo uma palavra só ao longo de um projeto pedagógico. É preciso agregar a produção de sua palavra (objeto-sujeito) na palavra do outro (objeto-sujeito). Ela precisa produzir sentido em tudo o que aprende, caso contrário o seu pensamento com suporte na memória reprodutiva não consegue criar de tão cansada fica.

A palavra "açaí" e seu - nosso microcosmo
À aprendizagem segue o desenvolvimento, segundo Vygotsky, é preciso que a palavra focada seja vista em diferentes contextos ou gêneros literários. A nova palavra se desdobra nos significados. Do Açaí, Yasaí, Fruta-que-chora, Açaizeiro, Vassoura, Corrida de Bocó, Corrida de Peconha, Macaca, Brincadeiras, Trabalho, Colheita, Venda, Comércio, Fome, Boca Roxa, Boca Pálida, Energia, Tapioca, Peixe, Carne-de-sol, Bicho Barbeiro, Higiene, Bacaba, Barco, Casquinho, Trapiche, Icoaraci, Ilha, Rio, Ribeirinho, Águas, Fluxos, Movimentos, Luta, Luto, Alegria, Música, Dança, Festa, Ecojóia, Safra, Trabalho Infantil, Escola, Cidadania, Vida!

A palavra Açaí se desdobra em tantas outras, não é mesmo? Então nada de ficar exaustivamente o ano inteiro trabalhando só com ela. Sósórósósó Açaí? Bem, cria-se o “mapa mental” bem legal com o alunado.

Contraste...
Qual a diferença do açaí e da bacaba, da vassoura e da “corrida de Bocó”, da fome e da energia, do hematófago bicho barbeiro e do piolho no cabelo, do modo de tomar açaí nas praias cariocas e de tomar açaí no festival de Inhangapi (PA)?

O texto escrito ou imagético da criança não é um vir-a-ser, ela é um sujeito social e histórico, dotada de linguagem própria que traz consigo uma visão de mundo e o dizer característico de sua gente, assim se respeita e se constrói a sua autorreferencialidade através da multirreferencialidade no processo ensino-aprendizagem. 

Casquinhos abarrotados de açaí
Ou seja, "a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo", dá a criança gostosamente a oportunidade de "escrevê-lo ou de ‘reescrevê-lo’, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente" (Freire, 1989, p.22), de uma práxis que permita a criança repetir, re-criar, re-viver a palavra e reinventá-la no texto que representa. Como também cooperar na reforma da natureza - humana - se preciso for, coisas de boneca que vira gente e espanta as gentes com medo do minhocão que vem vindo ou daquele que não "olha-pro-caminho-quem-vem".

Capa Original - 1a. edição 1941
Pois é, o minhocão botou os moradores para correr. E os jornais do mundo inteiro noticiaram e os canhões antiaéreos tentavam atirar contra a Coisa Preta lá de Juiz de Fora corrida pro Canal do Panamá e resolvida a beber sangue dum cavalo velho americano e a fazer as pulgas morrerem estataladas. Mas, que estranho fenômeno, hem Dona Pituitária?

Alguém por acaso sabe do monstro que assustou o mundo naquele lugar e no auge do café?

Coisas estranhas estão a acontecer aqui e acolá. E o texto do aluno a deslumbrar a vida e a nos fazer rir ou chorar - de tanto rir ou chorar mesmo. Quais as hipóteses das crianças e dos demais leitores? A coisa está mesmo preta! rs

Referências
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, 1989.
LOBATO, Monteiro. A reforma da natureza. 38 ed. 13ª. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2004.
ROCHA Ruth. Marcelo, Marmelo, Martelo e outras histórias. 42 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1993.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
VIGOTSKII, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 10 ed. São Paulo: Ícone, 2006.
VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. 3 ed. São Paulo; Martins Fontes, 1991.

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