domingo, 3 de janeiro de 2010

O que significa o não-aprender dentro do aprender?

O aprender acontece em diferentes dimensões do pensamento, do sentimento, da ação e das interações socioafetivas. O não aprender faz parte do processo de desenvolvimento da pessoa. As pessoas se constroem em relação e se constituem a partir da qualidade da relação que estabelecem.

- Como construimos a nossa forma de aprender?
- O que representa o não-aprender? Desvios? Culpa? Medo? Descaso? Acaso? Um outro dia? Eclipse? Ecos? Silêncios? Isso existe?

Nem todos aprendem em silêncio ou olhando para o(a) professor(a). A indisciplina pode ser o lado humano se manifestando. As emoções precisam ser acolhidas (Taille; Wallon, 1992; 1989) e dependem da acolhida afetiva do adulto (do Outro), a maneira dele influencia a troca, na criança pequena, assim como, o aspecto cognitivo. O afeto é o motor da inteligência, segundo Piaget. Cognição e afeto estão indissociáveis no ser humano. São os desejos, necessidades, emoções, motivações, impulsos e inclinações que dão origem ao pensamento e este, por sua vez, exerce influência sobre o aspecto afetivo-volitivo (Rego, 1998).

As emoções são manifestações da vida afetiva, como os sentimentos e os desejos. A afetividade possui um conceito mais amplo, abarca todos os tipos de emoções.

Para melhor representar o significado do "não-aprender", como objeto de reflexão, compreensão e novas aprendizagens, diante de um contexto de submissão e rebeldia, selecionei o caso de Nailton (Patto, 1999), um aluno de 9 anos, classificado como "deficiente mental" pela orientadora da escola, esse menino acumulava duas reprovações na 1a. série (1982-1984).

Sua persistência e habilidades colocam em questão a "oligofrenia leve" diagnosticada posteriormente por um psiquiatra. O menino revela capacidade cognitiva ao realizar atividades lúdicas aos olhos da pesquisadora. Crianças que convivem e interagem com atividades lúdicas são mais capazes na relação fundamental de limites e valores (Haetinger, 2006). E a prescrição pedagógica?

As atividades lúdicas integram o conhecimento à ação prática. O jogo é indispensável no ato de aprender e ensinar. É forma vivencial. É base epistemológica. Brincar, jogar, relacionar, viver, simular, imaginar, aprender. Jogos e brincadeiras são nossos mediadores na relação com as coisas do mundo. Por isso devem ocupar papel de destaque na educação de crianças.

O jogo é a base do desenvolvimento cognitivo e afetivo do ser humano, além do fator mágico, possui aspectos fundamentais para a aprendizagem racional e emocional. Nailton constrói seus brinquedos e de seus irmãos. Prefere inventar diferentes modelos de pipas. Propõe-se desafios, do tipo, construí-las sem a armação de linha. Passa tempo com esmero para encontrar os pontos de equilíbrio. Com pedaços exíguos de papel lida com noções de espaço e superfície, planeja e antecipa resultados, dali originalmente surgem pipas, como a do peixinho, a da estrela etc.

Na época construía arapucas também cuidadosamente até acertar o ponto "x" entre uma vareta e outra para melhor acionar a arapuca e o corpo da armadilha.

Seu irmão Gilmar, menos habilidoso, mantinha com ele uma relação de competição e cooperação, Nailton aceitava o título de "nervoso", o irmão qualificava-se como colaborador, calmo e inteligente aos olhos da família e da escola. Embora Nailton se irritasse sempre com a interferência do irmão, aceitava a "superioridade" de Gilmar procurando se beneficiar dela. "Escreve para mim aqui".

Segundo o pai deles, seus dois filhos gostavam muito de desenhar, mas, logo perderam o interesse, pois, para eles, caracterizados pela estereotipia, na escola tinham que reproduzir o mais fielmente possível o modelo fornecido pela professora.

Ao escrever seu nome, Nailton diz que aprendeu a copiar da professora. Mostrou-se aflito para recordar sílabas e letras. Sem modelo, escreveu "ELA" para a palavra escola dizendo estar fazendo qualquer doideira.

No caderno, há muitas cópias de cartilha. Quando lê, aflitamente puxa pela memória, faz associações, troca por sinônimos. Limita-se a escrever reproduzindo palavras da escola, assim como os desenhos. Apesar do bloqueio e ansiedade ainda demonstrava interesse em produzir escrita.

O discurso de ser lesado é muito evidente em seus depoimentos, a professora arrancava a folha do caderno quando Nailton fazia outras coisas que ela não pedia, diz que trazia a lição de casa, mas, a professora nunca via a dele, pois, sentava em uma fila que nunca dava tempo dela olhar o que ele fazia.

Frequentemente desenhava com uma régua, uma escola quase do tamanho da folha de papel, mas, o problema de acesso era sempre mal resolvido, para quem calculava os pontos de equilíbrio em suas invencionices, a porta era pequena demais, nunca colocava janela em sua escola, e quando desenhava escada, não chegava a lugar nenhum, pois esquecia sempre da porta. Assim desistia de desenhar e saía.

Sobre o significado do não-aprender e suas escolhas, tendo como referência esse caso de Maria Helena Souza Patto (1999), dentre outros, a nos fazer revisitar as teorias da "carência cultural" e "crítico-reprodutivistas" - historicamente alargadas no país de 1950 a 1980 - nos exige re-olhar o fracasso escolar de forma interdisciplinar e ressignificar posturas docentes herdadas desses tempos - bem mais de submissão do que de rebeldia, assim questionamo-nos de forma reconstrutiva:

- O que Nailton aprendeu com sua professora?
- No contexto atual, o que as crianças estão aprendendo com seus educadores?
- Qual o limite que educa e provoca o desenvolvimento e qual cerceia e impede o desenvolvimento?
- Qual o limite que deve e precisa ser transposto e qual precisa e deve ser respeitado?

A violência é fruto do desconhecimento, da fragmentação do olhar, da pobreza (em todas as esferas), da falta de solidariedade, de valores que nos destacam, sobretudo, como seres humanizados e amorosos.
- Quantos e diferentes Nailtons existem?
Referências
HAETINGER, Max Gunther. Jogos, recreação e lazer. 2 ed. Curitiba: IESDE Brasil, 2006.
PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. 2 ed. 2 reimp. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
REGO, Tereza Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 8 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
STAREPRAVO, Ana Ruth; PAROLIN, Isabel Cristina; BOZZA, Sandra (Org.). Na escola sem aprender? Isso não! três olhares sobre o aprender e o ensinar. 21 ed. Pinhais, PR: Melo, 2009.
TAILLE, Yves de la et al. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. 9 ed. São Paulo: Summus, 1992.
WALLON, Henri. As origens do pensamento na criança. São Paulo: Manole, 1989.
Imagem 1: http://www.brincadeirasdecrianca.com.br/quadr/z_arapuca.jpg
Imagem 2: http://thecrivablog.blogspot.com/
Imagem 4: www.miniweb.com.br/.../img_cachorro_roca.jpg

Um comentário:

  1. Olá! Passei por aqui e me encantei com seu espaço. Gosto de ouvir, ver e ler sobre crianças, aprendizagem, livros... Torno-me sua seguidora para voltar aqui e quem sabe podermos trocar boas idéias em 2010? Passa lá no meu espaço também. Abraço, Joyce.

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