sábado, 9 de outubro de 2010

Círio de Nazaré: fé, tradição, contos, encantos e reinvenções

No sábado pela manhã, películas sagradas revestem e se aprofundam nas águas do rio e borbulham de amor e fé diante da peregrinação fluvial que valoriza as histórias, celebra a cultura e atravessa olhares de diferentes povos, crenças, sentimentos, acenos, silêncios, soluços, esperanças, barcos, ribeirinhos, sonhos, dores, alegrias... A imagem é a representação de que neste contexto? Cada peregrino conta a sua história de fé.

Este segundo final de semana de outubro é sempre muito especial em Belém do Pará, os devotos da Santa de Nazaré chegam à cidade desde o início da semana, vem a pé, de moto ou bicicleta, de cidades próximas, peregrinam em famílias ou entre amigos assim percorrem de lá para cá cantando, louvando, rezando... E os parentes ou amigos daqui preparam as comidas típicas da festa para recebê-los também: o famoso pato no tucupi, a tradicional maniçoba, o vinho do açaí não podem faltar.

No sábado à noite, acontece a procissão de transladação da Santa até a Igreja Matriz, e na manhã de domingo, a grande romaria do Círio de Nazaré que vem da Matriz até a Basílica de Nazaré. Demonstração de fé desfila e sustenta cada mão, na ida ou na volta, que agarra cada milímetro da corda atrelada à Nossa Senhora.

Nas escolas, os alunos revivem as histórias de suas famílias, mesmo que não sejam católicos não ficam indiferentes, pois, esse evento religioso que abre o “Círio de Nazaré” consegue reunir um pouco mais de dois milhões de pessoas nas caminhadas da fé. É uma espécie de Natal fora de época, ou melhor, é o natal do povo paraense!

Duas histórias pitorescas envolvem o exótico e principal prato desse Natal, ouvi dentre os relatos que fazem parte do meu imaginário pedagógico que retratam este período. Uma me foi narrada por um aluno de pedagogia, em 2008, escrevendo suas memórias de brinquedos, brincadeiras, cultura e mitos.

A casa de sua avó, matriarca da família, tinha um belo e grande quintal e durante o Círio reunia a parentada toda e mais os aderentes. Seu neto morava com ela e durante a semana toda acompanhava a vovó mexer a tal da maniva (folhas de mandioca considerada venenosa, a de talo roxo) que lá no meio do quintal se cozinhava no panelão, dia e noite, pois, reza a tradição que quanto mais tempo passar cozinhando mais gostosa fica a maniçoba.

A maniçoba caseira é uma receita de origem indígena, bem lembra uma feijoada, com o diferencial de que leva sete dias para ficar pronta.

Sabemos que o maravilhoso, a fábula, os mitos e as lendas se comunicam facilmente com o pensamento mágico da crianças e ajudam-na a entender o mundo dos adultos, a gente procura deixar uma brecha para que possam espiar, estreitar, percorrer, alargar-se combinando humor, sentimentos, percepção, cotidiano, memória e fábulas através de processos lúdicos. O conto faz parte dessa mágica. O professor atua como mediador entre imaginário e imaginação.

Aos poucos fui me deliciando com a história contada por um professor a uma turma de alunos de 1a. série ou 1o. ano, em 2009, quando resolveu aproveitar de nossas conversas sobre "literatura infantil" e "mediações pedagógicas" e fazer releitura com os alunos introduzindo elementos da cultura local na história - a exemplo das misturinhas que Monteiro Lobato adorava fazer entre os personagens do sítio com outros personagens clássicos, de fadas, do folclore brasileiro, da HQ como o Marinheiro Popeye, a menina prodígio de Hollywood dos anos 30 e 40 etc. De repente o Peter Pan chegava voando e a mágica acontecia, adultos e crianças interagiam. Loucura, loucura. Intertextos da vida! A boneca Emília era campeã dessas misturinhas.

Desse modo, o professor movimentou o enredo com a participação dos alunos, a história contada em sala de aula começou mais ou menos assim, apesar de diferentes finais, o que deixo para uma outra postagem:

Havia três porquinhos Heitor, Cícero e Prático... que devido a proximidade da festa do Círio fugiram de Belém para a floresta”. Nesse momento, o aluno “M. Nazareno” interrompe e continua: “’...fugiram para a Escola Bosque’, né professor? Aqui não é floresta?”. E o professor que substituía a professora da turma, continuou, evocando os imaginários, mas, resolveu dar a eles fantoches para provocar ainda mais a expressividade que fervilhava dentre alunos de 6 a 7 anos considerados inquietos.

- Um parêntese abro aqui, além do pato, o outro animal muito cobiçado por estas bandas é o porco para a maniçoba, afinal, é a versão indígena do prato tradicional da feijoada, ou vice-e-versa.

Como a história se seguia pelas suscitadas interações. Faz parte do imaginário pensar que “os porquinhos com muito medo do Lobo Mau, que estava por demais faminto da conta e como se aproximava cada vez mais a época do Círio, o porquinho mais velho e mais experiente conversou com seus irmãos Heitor e Cícero" e juntos decidiram o quê?

- Quem imagina?

Pois é, na troca... se propôs rezar, mas, para a Nossa Senhora de Nazaré, assim com muita fé, a inteligência e a união dos três, o Lobo não conseguiu derrubar a casa e nem mesmo a porta, cansado de tanto assoprar, ficou com tontura, dor de cabeça e bastante enjoado de correr atrás de porquinhos e acabou virando vegetariano e a maniçoba foi bem diferente dessas que vimos por aí.
Cada um deverá imaginar os ingredientes que podem fazer parte deste “novo” prato, mas, sem deixar de ser tão saboroso para quem não vê a hora de comer. O nosso paladar tem memória?

A história primeira de meu aluno, nada animada na época, supostamente adveio de uma “brincadeira” de criança. É real e viva de doer. Imaginem só vocês o susto da vovó na véspera do Círio quando a maniçoba estava quase no ponto, a saber que também ela andava muito cansada de tanto procurar seu bichano por toda casa e quintal da vizinhança, todo mundo por ali dormia em redes nas varandas, ficava até tarde da noite cheios de prosas, conversas bem recheadas de contos, causos e fatos locais, lembranças variadas e de repente todos se deparam com um grito ensurdecedor, bem maior do que daquele de quem já viu a matinta-perera ou a mula sem-cabeça de pertinho assim. Pois, bem, os dois primos trataram de se esconder, um por ter jogado o gato no panelão fervendo e o outro por ter visto de esguelha, o feito do primo. Quase mataram a coitada da vovó.

Esse Círio foi marcante para todos daquela família e hoje em dia faz parte dos causos contados aos mais novos membros da família. Travessuras doloridas e que parece piada. Era trágico ver pelo de gato para tudo quanto é lado da panela, deu até para ver o bigode, narrava meu aluno para outras colegas de Pedagogia, a gente ficou meio assim sem saber o que dizer...

Há quem disse que o autor deveria ter sido ele. No final do conto, assegurou ter quase sobrado para ele a chinelada da avó. Um tinha cinco e o outro tinha sete anos.

Quantas histórias do Círio existem por aí? Se a gente parar para ouvir vamos aprender bastante e até nos divertir muito com o imaginário popular. As histórias se misturam nesse evento de cultura e fé, aqui trouxe o que religa o povo desta terra e águas amazônidas e faz com que o sagrado e o profano aproximem imaginários, corações, almas e sonhos, sentimentos que retextualizam a paz e o amor entre pessoas, suas memórias e relações. As crianças são amantes de "Monteiro Lobato" sempre ressignificado pelas misturinhas que ajudam compreender parte da complexidade que nos envolve.

- Feliz Círio a todos!

Imagem 1: http://www.ciriodenazare.com.br/v2.0/?action=Menu.detalhe&id=39
Imagem 2: http://1.bp.blogspot.com/_HRwkIcBZ8nY/S6ECO_5yJVI/AAAAAAAAAfQ/DLn8V3hwd-g/s1600-h/Mandioca+brava.jpg
Imagem 3: http://www.lendo.org/wp-content/uploads/2009/01/os-tres-porquinhos.jpg
Imagem 4: http://www.papodegordo.com.br/index.php/2010/01/06/lobo-mau-vegan/

2 comentários:

  1. Judiaria com o gatinho, Maria!

    Adoro a versão das crianças para as histórias. Eles dão um show de imaginação.

    Forte abraço

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  2. Não é, menino? Pois ficamos estupefatas com o relato do colega na Faculdade que lecionei. Agora cada vez que me falam da maniçoba essa história dele me vem à memória... E sabe como isto veio à tona? Através de contos e brinquedos de infância quando cada aluno fazia seu relato, e era por volta de setembro, quando ele nos fez o relato. O conto poderemos dizer que seria uma releitura do "Dom Ratão" da senhora "Dona Baratinha", que caiu no feijão da festa.

    Os alunos na escola foram também maravilhosos, pois, os porquinhos fugiram para a floresta e outros rezaram para Maria de Nazaré.

    Quis trazer nesta versão o lado da Literatura Infantil na releitura da misturinha de Monteiro Lobato.

    Outro forte abraço!

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