domingo, 5 de dezembro de 2010

Erro e mediação pedagógica: o pensar, o dizer e a textualidade dos alunos

Estou avaliando cerca de 710 alunos ou alunas colaboradores em suas maneiras de pensar a escrita e os seus desenhos - e neste caso sobre o tema bullying - pelo que nos mostram e somos capazes de ler. Percebo aí, nos limites de minha leitura, a dificuldade que encontram em sua linguagem, na transposição do pensamento, na aprendizagem declarada e as formas encontradas para expressar o que sentem, emitir opinião e ser entendido pelo outro. Geralmente, é o professor que avalia, poucas vezes se percebe a interação entre alunos. De aluno para aluno.


Escreve-se para o outro. Esse outro de suas produções textuais ou composição imagética-textual na escola, conforme metodologia, vem confirmando ser mesmo o professor.


Do lado das imagens, a maioria dos desenhos dos alunos mostra os personagens voltados ao leitor, a esse leitor dirigido. Por quê? Pausa para nossos pensamentos e intervenções históricas. Para quem escrevíamos? Para quem desenhávamos no tempo de aprender na escola e ficar ali em bancos escolares, situados nas décadas de 60 a 80, a olhar para a cabeça do outro sentado ou em pé à nossa frente? De que lugar falamos/avaliamos hoje?


Que lugar o corpo ocupa? Para quem eles dizem o que dizem? Como interagem com os colegas? Como deve ocorrer o feedback? Vamos observar essas imagens... 
- Percebeu a posição dos corpos frontal ao leitor?


Além da leitura das imagens, há a necessidade de saber ler o que produzem, trago aqui uma das escritas - e composição - que escolhi para conversarmos sobre o erro e as nossas concepções.


José Antônio tem 13 anos de idade e estuda no CIII-2º ano, correspondente a 6ª série ou 7º ano. Vamos olhar sua produção por parte:

Parte 1: Prefere usar a folha na vertical, nela inscreve o típico cabeçalho, situando-se no tempo e no espaço. Escrita com poucos erros.


Parte 2: Opta por ilustrar primeiro. Traz cenário de bullying que colhe de seu imaginário. Ausência de linha de base (talvez pela multiplicidade de plano sob visão axial). Nota-se também aí, personagens voltados ao leitor. Percebe-se que alguns dos pés já acompanham a posição do corpo, a maioria volta-se à cena principal. Os protagonistas levam somente uma de suas mãos ao outro e permanecem de corpo frontal ao leitor, seus pés não estão coordenados com seus corpos, voltam-se os quatro para a esquerda, denunciando a não interação. [Por que não interagem entre si e olham para nós?] As mãos estão incompletas, apesar dos braços já indicarem movimentos diferentes. Há estilo no desenho, mostrando autoria, no formato do rosto e no queixo angular, além das expressões - apesar do olhar vidrado dos protagonistas no leitor. É queixa ou lamento? Como despertar, sacudir, desconstruir, ou seja, mediar os corpos relacionais aprisionados? Como valorizar a identidade dos sujeitos? Quais são os saberes desse aluno? Como mediá-los observando seus limites e o saber ignorado, desconhecido? Como encantá-lo?


Parte 3: Descreve a cena por escrito, reiterando o dito. Sentiu necessidade de esclarecer, por quê? São as voltas que se dá no mesmo assunto. Vício da didática? Onde se busca o sentido, o novo significado, a surpresa?


Quem consegue ler o que ele escreveu? Que nota daria você para a escrita? Para o desenho? Para a composição do José? E para a sua mediação? Como avaliamos o que ele aprendeu antes, durante e após o feedback?


Bem, quantos alunos da escola se encaixam neste perfil de aprendizagem? Como avaliamos a modalidade sintomática da aprendizagem observada nestes casos?


José sabe ler? Sim, sabe ler e escrever. Por que então erra? Onde ele errou? Por que errou? Qual seria a melhor mediação? Dar o texto corrigido indicando o erro?


José "erra" na escrita espontânea. No ditado e na cópia pode até se sair bem, se as palavras forem de seu cotidiano e escritas para o professor. No seu texto atravessam relações fonéticas, ortografia, regras, macetes, cotidianos, cotidianeidades e muitos sentimentos, além da busca pelo sentido e clareza do significado, prenúncios ou pressupostos da coesão e coerência textual. Trama tecida, percebida e concebida nas vivências e emoções compartilhadas com outros corpos relacionais. Ditos e não-ditos. Padrões e dialetos.


Escritas do lugar (olhar da sociolinguística):
Piquiar para Piquiá, er para é (flexão do verbo ser), tor para to (todo). Olhamo para olhando - assim como - brigamo para brigando...


Erro do processo de alfabetização (poderia ser corrigido a questão da impostação do fonema e relação com o signo):
memimos (meninos), troca na grafia do n pelo m,
do l pelo m, em romamo (rolando)


Transposição fonética – consciência fono-articulatória:
pata para apartar (por que não percebe o “r”?)
megem para ninguém


Aglutinação:
ermegemão a pe ta (e ninguem não aparta)


O que ele escreveu?
Eu escrevi que tem dois meninos brigando e ninguém não aparta a briga que está rolando todo mundo está olhando”.


Daí vocês me perguntam? E os erros de pontuação? Ou erros de respiração, entonação, inconsciências...


[um pequenino adendo aqui para ajudar a nossa reflexão pedagógica - segundo Sara Pain - "o pensamento está ligado ao organismo pela sua estrutura e, ao corpo, por seu conteúdo. O mais simples comportamento vivido, com a participação do corpo, é já um pensamento, seja porque nos remete a uma lógica da ação ou a um sistema de significações, seja porque ele produz um sujeito como efeito do domínio dessa ação". Como psicopedagoga não posso deixar de dizer isso, por que os textos da escola não incorporam a composição imagética? Os corpos não se relacionam? Os corpos permanecem aprisionados? O que os alunos imaginam? O que eles pensam? Como combinam imaginação e pensamento? criatividades - sabor, cheiro, textura, toques - não ditos... proibidos e liberados, qual é o meio-termo? onde se busca o equilíbrio e a relação com o fenômeno bullying no seu conjunto?]


Mas, afinal o que são erros para o processo de mediação pedagógica? Quem é o mediador?


Este aluno pode ser aprovado ou reprovado, já que esta escrita, foi apresentada próximo ao final do ano letivo?


Professores podem dizer que não se tem tempo de ensinar problemas como estes que acontecem aos borbotões nos textos de geografia, história, ciências, matemática etecetera e tais.


Você conseguiu ler o que José escreveu?
- E agora José?


"Não há conhecimento, por mais abstrato que se apresente, que um dia não tenha sido corpo..." - Sara Paín - ah! como eu entendo nossos alunos e alunas, porque sou uma aluna também, nas aprendências de professora.



Observações::

(1) Selecionei desenhos de somente cinco turmas das trinta e uma turmas da escola que interagiram com seus mediadores e professores colaboradores por meio de palestra, filmes e preenchimento de questionário sobre bullying, porém, a grande maioria dos 710 alunos apresenta desenho para o leitor. Essas cinco turmas são de alunos de 9 a 14 anos, de 5o. ao 7o. ano do Ensino Fundamental. 

(2) Por que escolhi a palavra "textualidade" para intensificar às aprendências? Animada pela leitura de Eni Orlandi, aqui destaco o trecho que nos ajuda a reler as escritas dos alunos, seus dizeres e os não-ditos:

A textualidade por sua vez é função da relação do texto consigo mesmo e com a exterioridade. É pensando a relação do texto com sua exterioridade que podemos pensar não a função do texto mas seu funcionamento. [...] Quando uma palavra significa é porque ela tem textualidade, ou seja, é porque sua interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade significativa.

Não são as palavras que significam mas o texto. Quando uma palavra significa é porque ela tem textualidade, ou seja, é porque sua interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade significativa. A palavra que significa é uma palavra textualizada. (Orlandi, 2006, p.22).


(3) Uma nova postagem sobre "corpos relacionais" sob enfoque dos alunos será apresentada. Ainda faltam oito turmas das 31 para leitura e aprendências acerca dos saberes de nossos alunos.

Referências
- ORLANDI, Eni. Análise de discurso. In: ORLANDI, Eni P.; LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy (Org.). Discurso e Textualidade. Campinas, SP: Pontes, 2006.
- PAÍN, Sara. A função da ignorância. Porto Alegre: Artmed, 1999. 

3 comentários:

  1. Rocio, uma excelente postagem, um tanto longa demais, porém muito boa mesmo. Parabéns sinceros.
    Franz

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  2. Oi, Maria

    Excelente post!

    Fiquei fascinado com as interpretações da escrita e, principalmente, dos desenhos. Foi uma experiência nova pra mim. Ao ler suas intervenções, os detalhes se tornaram claros.
    Assim como eu, acredito que muitos adultos olhem superficialmente para os desenhos de criança.

    Obrigado por abrir meus olhos.

    Forte abraço =)

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  3. Olá Franz!

    É sempre um prazer a visita daquele que me iniciou na blogagem, ou seja, você é o meu querido professor nesta arte e técnica. Aceito os puxões de orelha. E sempre.

    Também aprendi com a Santaella sobre o prazer e o objetivo de nossos leitores contemplativos, moventes ou imersivos. Tudo depende também de nosso objetivo e prazer em postar. Na conversa com Pedro Demo sobre o tamanho ideal de um post, igualmente inquieta, disse-me que os textos dos seus dois blog são enormes e demandam tempo na elaboração. Talvez o meio termo seja mesmo oferecer ao leitor interessado um caminho para o download. Isso ele também já faz. Assim podemos atingir a todos os gostos de nossos leitores.

    Valeu pela inquietação professor!

    Oi Max!

    Também fico fascinada quando leio cada desenho de alunos ou alunas, os desafios das aprendizagens que me remetem e requerem, cada um deles nesse processo dialógico é singular em sua pluralidade, o que dizem, o que sentem e o que ali buscam. Comecei a me interessar em ler desenhos com meus alunos de educação infantil, cada risquinho no papel era visto como um signo, e assim ia interagindo com eles em sala de aula. Depois fui aprendendo com alunos de 3a. série, tudo ainda na década de 80.

    De fato quem nos abre os olhos são os dizeres desses jovens autores ainda atravessados pela nossa formação socio-histórica. E vamos aprendendo com eles dessa geração "imersiva" multimidia.

    Estamos abertos ao novo, desconstruindo e nos formando mutuamente.

    Outro forte Abraço!

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