sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Letramentos por entre barcos, rios, pontes, açaís, jogos, sonhos e alegrias: cotidianos a navegar

Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismos. (Paulo Freire, 1998, p.58-9).

Crianças ribeirinhas vivem uma infância abreviada por conta da subsistência de suas famílias. O açaizeiro magricelo e alto é o prazer delas que olham sua altura e se colocam a subir. Quanta destreza e agilidade. Descem com um cacho farto de açaí. O lúdico permeia!?

A palmeira não suporta o peso do adulto. E seus filhos são pequenos e fortes. As crianças parecem pequenos anões, suas pernas se moldam a cada "trepada". A corporeirade traduz o lugar de onde vem.

As crianças de 4 e 6 anos são poupadas. Daí em diante ao suportar o peso do fruto começam a colher para a família vender na feira ou mesmo se alimentar.

Chegam na escola com a infância pela metade, pois, parte do tempo se dedicam à colheita.

Qual o sentimento e o sentido de infância que as famílias lhes dão?

Os professores dessas localidades pensam projetos para dar mais alegria, delicadeza, criticidade e amenizar a vida enrudecida: literatura infantil, cultura lúdica, músicas, artes, risos, sorrisos, hortas do conhecimento, visualidade ribeirinha. E as crianças a brincar no tempo, que lhes sobra, por entre pontes, canoas, árvores, rios, letras e suas harmonias.

Qual é a infância que as nossas crianças hoje vivenciam? A vaidade por aqui em nossa sociedade consumista impera, e as princesinhas de cá querem participar de concursos, desfiles, usar batom...

A cidade faz das crianças pequenos adultos, e também imperfeitos, a ilha faz delas pequenos trabalhadores, também explorados. Que tempo retornamos?

Quais os riscos que correm? Cair do açaizeiro? Ou nas malhas da pedofilia? Exploração das imagens? Dos seus corpos que se moldam ao contexto?

Literatura infantil? O olhar ampliado mais crítico, mais criativo, mais criador, mais humano, mais próximo. O conhecimento contruído pelas crianças, sabemos pela práxis que é fruto de um trabalho bem mais intenso de criação, significação e ressignificação. Buscam sempre o sentido próprio para as coisas de nosso mundo.

A vida é sonho. Navegar é preciso! Os sonhos? Sonhos são!

O lúdico resgata a infância. Os cantos, as músicas, os brinquedos e as brincadeiras não estão fora de moda. Independente das condições sociais é nata a forma de brincar. As crianças trazem o lúdico no sangue. Mas, as festas das famílias no tempo da colheita mostram adultos nem sempre tão preocupados com as crianças que ali estão e põem em jogo as diferentes formas de se divertir.

Outro problema por lá, os turistas que passam ao largo vão despejando seus copos, garrafas plásticas, papéis etc. por sobre as águas. As águas trazem tudo o que se descarta e, por vezes, na rede vem um peixe engasgado.
Um projeto pedagógico nasce de uma situação-problema. No re-olhar da situação podemos ver, com o apoio de Kleiman (2000, p.238), a construção de um projeto de letramento, que reaproveite a realidade local e dê corpo a um "conjunto de atividades que se origina de um interesse real na vida dos alunos e cuja realização envolve o uso da escrita, isto é, a leitura de textos que, de fato, circulam na [comunidade] e a produção de textos que serão totalmente lidos, em um trabalho coletivo de alunos e professor[a], cada um segundo a sua capacidade".

O que o currículo da escola está a nos apontar? Como a escola pode fazer a diferença na vida dessas crianças? Vamos repensar as questões sociais no pedagógico e encontrar a melhor forma de mediar, temperar a crítica e ampliar o olhar cotidiano através das leituras, releituras e retextualização.

Mais poesia e ciência, multirreferencialidade e autopoiesis - como a condição humana de seus múltiplos pontos, contrapontos ou religares, buscando o divinamente humano de nossa natureza...

Açaí, barcos, jogos, alegrias culturais, letramentos. Ressignificação! O olhar se amplia com a introdução de novos elementos e as possibilidades dialógicas.

É justamente em momentos de desconforto entre o saber e o conhecimento sistematizado, o anterior e o novo, que se dissipam a percepção das diferenças entre aprendizagens e não aprendizagens (Vygotsky, 1988).

Qual o universo vocabular dos alunos? As palavras gestadas em seu meio? Educação é conscientização. É reflexão rigorosa e conjunta sobre a realidade em que se vive, de onde emana o projeto pedagógico. Ciência, cultura e cidadania, aspectos múltiplos e pertinentes de assumir o letramento, ou seja, os letramentos múltiplos da vida social, como objetivo único e estruturante do trabalho escolar em todos os ciclos e fases.

Sobre os sonhos? Calderón (2008, p.22) sempre nos emociona em seu acordar a nos dizer: "Que é a vida? Um frenesi. / Que é a vida? Uma ilusão, / Uma sombra, uma ficção; / O maior bem é tristonho, / Porque toda a vida é sonho / E os sonhos, sonhos são". Em tela, este é um dos retoques da querida Stella Pessoa que, em sua reengenharia das palavras, me presentificou, entre outras leituras, a de La Barca.

Referências
- BARCA, Calderón de La. A vida é sonho. São Paulo: Hedra, 2008.
- FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
- KLEIMAN, Ângela. O processo de aculturação pela escrita: ensino da forma ou aprendizagem da função? In: KLEIMAN, Ângela; SIGNORINI, Inês (Org.). O ensino e a formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artmed, 2000. (p.223-243).
- VYGOTSKY, Lev Semyonovich. A formação social da mente. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.


Imagem 2: arquivo pessoal
Imagem 3: http://radionews.musicblog.com.br/38957/Menino-Exibe-o-Cacho-de-Acai-Que-Colheu-na-Floresta/ (modificada)
Imagem 4: http://www.masp.art.br/servicoeducativo/assessoriaaoprofessor-nov07.jpg

Um comentário:

  1. Minha amiga, bom dia.
    Mil desculpas por minha falta em seu blog, mas estava com visita em casa, uma verdadeira bagunça - filhos e genros. Sabe como é, não conseguia vaga no computador (rs). Eles acabaram de descer para o Rio. Vou dar uma ajeitada na casa e depois volto com mais calma. Está acontecendo uma coisa muito esquisita, o link do seu blog sempre entra desabilitado, isso faz com que não consiga chefar até aqui. Hoje ele apareceu habilitado, mas não acontece isso normalmente. Deve ser proveniente daquele problema que me excluiu para adicionar os blogs.
    Boa semana para você. Como foi de carnaval ?
    Beijo grande.

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