sábado, 6 de fevereiro de 2010

Patativa Cora Coragem: poetas de "mancheia"


Dois projetos, duas histórias em comum: contentamento descontente

La leçon de musique (1917), de Henri Matisse (imagem ao lado)

"O esforço necessário para ver as coisas sem distorção requer algo muito próximo à coragem; e esta coragem é essencial" (Matisse).

Criar é exprimir o que se tem em si. Todo esforço autêntico de criação é interior. Ninguém ensina nada a ninguém, há um contrato de aprendizagens, ou seja, predisposição a aprender com o outro. Multirreferencialidade e autorreferencialidade palavras interligadas. Segundo Freire (1986, p. 28), "a educação implica uma busca realizada por um sujeito, que deve ser sujeito de sua própria educação. (...) Esta busca deve ser feita com outros seres que também procuram ser mais e em comunhão com outras consciências, caso contrário se faria de umas consciências, objetos de outras".

Os dois aprendem: o mestre e o discípulo. Abrir-se ao outro. Abrir-se ao diferente. Quando o discípulo está pronto, o Mestre aparece! É preciso saber, conforme filosofia oriental, matar o mestre que há em nós e que pode nos impedir de aprender. Qual é o nosso apego? Orgulho, vaidade, ganância, ressentimento, medo, egoísmo, inveja... Despojar-se. Verter-se. Transbordar. Amar. Ensinamentos para nós que somos divinamente humanos. Co-aprendentes que deixam de ser aos poucos simplesmente (re)transmissores de conteúdo.

- O que é humildade? O que é ser simples? O que é ser do povo?


Lugar das aprendizagens: a escola na escola da vida. Porto de passagem. O projeto pedagógico tem sentido quando se coloca o coração nele - com coragem - diante de um mundo globalizado e esquecido de si. A miséria, a pobreza, a violência, o desamor.

Dar-cor-a-ação. Acordar. Despertar. A energia transborda e a atitude nos leva a buscar conhecer mais. Conhecer é estar com o outro. Não é esquecer dele ou se esquecer. Ou ter vergonha das próprias raízes. Na escola é o caminhar pela comunidade através das falas dos alunos. E tantas outras vozes se acrescentam. Na sala de aula ou em outro cantinho pedagógico aprendemos a re-olhar o que recolhemos. Assim se produz pouco a pouco a pesquisa socioantropológica. Assim aprendemos amalgamar cultura, ciência e cidadania.


O saber nos faz aprender mais ainda quando aplicamos a máxima socrática: “só sei que nada sei”. O nosso saber é limitado e necessitamos do outro. O que é a coragem para um guerreiro? O não fugir do combate? E a questão é: qual é a essência da palavra? Da mesma raiz que a palavra francesa “coeur”, que significa coração. O coração dá sangue, vida e energia para todos nós. E tudo funciona em nosso corpo. Assim como o coração irriga a vida, a coragem torna possível todas as virtudes psicológicas, e, segundo May (1982), “sem ela os outros valores fenecem, transformando-se em arremedo de virtude”.

O olhar sensível desvela a percepção e os questionamentos sobre a vida. O sentir e o inteligir estão interligados na caminhada. Caminhar pela comunidade é praticar a educação do sensível, como ação singular de apreensão senciente do real. E esse sonhar acordado vincula-se a duas grandes personalidades que bem traduzem a nossa voz. A voz do povo. Ícones da literatura brasileira de cordel que redesenharam as coisas do cotidiano com clamor, beleza, suavidade e encanto, capaz de tocar tanta gente e a nos desconstruir. Vamos sonhar juntos?

Na formação continuada de professores, de outubro 2008 a janeiro 2009, trouxe a eles sobre processos de letramento, dois poetas dignos de ad-mira-ação, Cora Coralina e Patativa do Assaré. Elaborei uma apresentação na intenção de tratar e a nos convidar a perceber o entrelugar dessas aprendências.



Dois brasileiros a cantar os encantos das histórias do povo, por opção, na linguagem popular. A obra poética resistente deles é rica em motivos do interior brasileiro, ou seja, em seus versos trazem a cotidianidade do sertão, de becos, recantos, ruas históricas ou de lugares castigados pela seca. Tal poética chama elementos da memória, da oralidade, da ressignificação de conceitos, temas bastante pertinentes aos membros do grupo cultural.

Um vem do sertão do Ceará, município do Assaré, lá do "Vale do Cariri", e a outra vem da "Cidade de Goiás" (município de Goiás).

No sistema de artérias e veias brasileiras destaca-se a literatura popular - ou de cordel. Pulsa a manifestação cultural através da escrita - com sangue e suor - produzida pelo próprio povo: cantigas, poemas e histórias do povo pelo povo. É o clamor encantado. A crítica com rima. “A dor que desatina sem doer”. A busca constante. Esperança sinalizada. A materialização dos desejos. Manifestos inteligentes e poéticos. É também releitura camoniana. Pois, no verso e reverso, é o contentamento descontente. Cheios de bossa. São clássicos e leigos. Misturinha inteligente. Poéticos. Essa gente do povo sábia reaprende no dito de que nada sabem.

A literatura de Cora e Patativa caracterizada, principalmente, pela poesia popular, traz a prosa bem marcada na forma oral, onde a voz se faz letra e continua a passar de geração em geração. São as alegrias culturais. De quem sabe fazer a crítica bem tecida.
Os dois relativizam a rigidez dos cânones (regras poéticas). A poética não é glosada ou fragmentada. Escandalizam? Seus versos não podem ser destacados de seu contexto e virar simplesmente "frases de efeito". Patativa é um artesão da palavra falada, narrador performático de improvisos versificados numa linguagem matuta, transitava da linguagem matuta a culta conforme o público que buscava atingir. Cora Coralina expressa a região como ninguém. Escritora de "mancheia" (Castro Alves) deixa claro seu lugar de origem.

Os dois souberam demarcar seus territórios e ganhar espaço na literatura brasileira do cordel à academia. Com a sua poesia matuta, Patativa foi condecorado como “doutor honoris causa” por cinco vezes. A poesia de Cora Coralina foi conhecida e admirada por Carlos Drumond de Andrade que, em 1980, após ler alguns escritos da autora, tece elogios e com a sua divulgação o público leitor a faz ficar conhecida por todo o Brasil.


- E os alunos, como suas vozes viram textos e são retextualizadas em espaços discursivos?

Quantas aprendizagens apreendemos ao nos dispor a ouvir e tecer junto! A comunidade chama, clama e nos ensina seus encantos. Ideias mil. O olhar do outro lado se complementa com aquele que daqui olhamos. Uma família inteira vive do lixo, sua casa é toda montada com as coisas que jogamos fora. Quantas desigualdades e tantas contradições. Como tratar o tema transversal, por exemplo, acerca da “saúde e meio ambiente”? É relativo - e a quê? Ou melhor, segundo Masur (1997), “o frio pode ser quente, pois tudo depende do jeito que a gente vê”.

É preciso re-construir um novo lugar, como aquele tão sonhado pela Ginger e suas amigas, em "A fuga das Galinhas", porém, com novas formas de habitá-lo e de saber relacionar-se (ser-no-mundo-com-os-outros). O questionamento reconstrutivo nos leva a confrontar com as incertezas, incluindo o estranhamento de si mesmo, porém, no percurso reaprendemos a não se desintegrar.

Diante do contexto atual de crise ambiental que atravessamos, inclusive com algumas populações desoladas e órfãs, observamos igualmente que as relações interpessoais e subjetivas estão em crise, sofrendo um processo de deterioração contínuo. Gattari (2001, p. 8) alerta que "é a relação da subjetividade com sua exterioridade - seja ela social, animal, vegetal, cósmica - que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização regressiva".

Arendt (1999, p. 39) nos ajuda a re-olhar as relações através da esfera familiar porque nela as pessoas aprendem a viver juntos compelidos por suas necessidades e carências, segundo ele (1999, p. 39) "a força compulsora [é] a própria vida (...) e a vida, para sua manutenção individual e sobrevivência, como vida da espécie requer a companhia dos outros". Vivemos com o meio uma relação de interdependência. Talvez somente na crise a gente consiga enxergar isso. Como é o caso das pessoas no Haiti, da miséria e da seca no nordeste brasileiro, da tormenta da fome em alguns países africanos, ou com algum esforço possamos olhar ao derredor para além do espaço televisivo.

Diante de tanta informação circulando e o processo de construção do conhecimento que nos assegura, Capra (1996, p.27) nos adverte para que as mudanças de valores ou pensamentos possam ser vistos "como mudanças da auto-afirmação para a integração". O olhar se dissipa, abre e se reintegra.

- Quem somos nós?


Referências
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global, 1983.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. 11 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 9 ed. São Paulo: Cortez. 2008.
MASUR, Jandira. O jogo do contrário. São Paulo: Ática, 1997.
MAY, Rollo. A coragem de criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.


Imagem 1: http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/matisse/matisse.lecon-musique.jpg
Imagem 2: http://www.artsstudio.com/reproductions/paintings/matisse-collio-000.jpg



2 comentários:

  1. Depois do cometário que fez, tinha certeza que aprenderia muito por aqui.

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  2. oh, rocio, que delícia ler essa postagem! é o coração falando e falando alto!nós, educadores, temos que ter o coração transbordante de amor, de coragem, de humildade, de alegria e de entusiasmo.....senão, seremos apenas professores.
    super beijo
    vera

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