sexta-feira, 16 de abril de 2010

Diversidade cultural: debate preciso em sala de aula


Nesta semana dois assuntos foram muito importantes na conversa com professores através de seus relatórios 2009. Discriminação racial e falseabilidades. Preconceitos velados. Silêncios abafadores.

Um tema foi sobre a compreensão de alunos acerca da genética, conteúdo de Biologia trabalhado no Ensino Médio Noturno. O docente em questão percebeu que a ponte entre conteúdo e aluno perpassa por uma pedagogia mediatizada. Como o perfil da turma incomodava a maior parte de seus professores, pela evasão "típica" da EJA (?!): desinteresse, cansaço, insegurança, pouca leitura, dificuldade na escrita etc., resolveu investir na escrita dos alunos através de um memorial e em parceria com a professora de Língua Portuguesa iniciaram a relação aprendente. Qual o conteúdo a apresentar na Feira da Cultura? Ficaram surpreendidas pela escolha da “Genética”, pelos termos científicos e barreiras percebidas na aprendizagem. Os alunos solicitavam momentos extras de aprendizagem da escrita, paragrafação, coesão, retextualização e orientação na pesquisa temática.

A discriminação racial, mesmo que velada entre alunos do 5º ano/4ª série, foi outro tema impactante percebido durante abordagem diagnóstica da avaliação que antecede à elaboração de projetos pedagógicos.

O primeiro tema proporcionou ao docente a observação da autonomia e o bom desempenho da turma e do próprio aluno consigo mesmo. A questão foi que muitas vezes o professor não percebe a descoberta pedagógica de sua relação aprendente com o aluno, a aluna, a turma inteira. E acaba não socializando sua experiência entre professores. Os alunos construíram um vínculo com o conteúdo e o seu cotidiano e se interessaram em melhor conhecer os termos científicos, a Lei de Mendel, o xis-zinho e o xis-zão. Em sua releitura venceram as barreiras da escrita construída durante boa parte de suas histórias escolarizadas, pedagogias que sufocam a voz, obstaculizam a autoria e a relação de prazer com a cultura letrada. Daí alunos com 19anos, 22 anos, 34 anos ou 62 anos narraram suas histórias.

Um aluno conta, em seu memorial, que seus pais morenos tiveram uma menina de pele clara, cabelos claros e olhos gateados. Os avós também eram morenos. O impacto fez com que a família olhasse diferente para este bebê, o pai desconfiasse da mãe, a mãe não sentisse seus pés no chão, os amigos de ambos fizessem piadas, a filha depois de crescida sofresse com a ideia de que estava sendo enganada por todos. Sobre o hospital também decaiu a desconfiança da troca de bebês. Somente após o exame de DNA, comprova-se a filiação legítima e legitima a comemoração de um “novo” nascimento da menina no seio familiar. Hoje, a compreensão adveio da descoberta de Mendel, segundo o aluno. Todos estão felizes.

Na turma de alunos menores (5º ano ou 4ª série), tratava-se de escolher o Lampião e a Maria Bonita dentre os alunos da turma para teatralizarem respectivos papéis. Primeiro escolheram o Lampião e, em seguida, a eleição da Maria Bonita. Cada candidato deveria “dizer” uma fala de sua personagem. A professora também votou e escolheu a última menina. A menina negra. De bastante eloquência e bom desembaraço. Alguns alunos resolvem também votar na escolha da professora. Segundo critério, não poderiam votar duas vezes. Uma nova votação. Assim se fez. A menina negra colocada diante da concorrente, loira de olhos claros. Processa-se a última votação. O texto reapresenta-se aos eleitores. O menino Lampião chega próximo da professora e diz bem baixinho que se a colega negra fosse escolhida, ele desistiria de fazer o papel de Lampião, seus colegas mais íntimos e próximos escutaram. A professora ficou apreensiva. As meninas nada escutaram desse cochicho. A votação elegeu a menina de pele e cabelos claros. A menina negra estava feliz por concorrer. A menina clara tensa e insegura com medo de perder. O menino confirmou seu papel de Lampião.

Perguntei à professora sobre seu encaminhamento à turma, diante do testemunho, de todo esse movimento dos alunos. Inicialmente, cogitou a questão da cultura negra/dos países africanos, para elaborar o projeto pedagógico. Um tema gerador se esgota e se desgata ao longo do ano se não for bem planejado. O problema da turma, segundo a própria professora, voltava-se à escrita. No ano anterior foram bastante estimulados na leitura, a escrita necessita agora ser priorizada, segundo seu primeiro olhar ao conjunto da turma.

Sugeri que as abordagens predominassem a formação da consciência. Como isso acontece? Expressando e olhando opiniões, interfaces, desconstruindo conceitos, dinâmicas reconstrutivas e falando de umas dúzias de coisinhas à-toa. Os jovens, pré-adolescentes e adolescentes são muito inseguros, volúveis e querem sempre se auto-afirmar diante de colegas ou grupos e outros mais experientes. Falam aos familiares e professores aquilo que o adulto quer ouvir, depois contrariam o dito, expõem as entrelinhas, o negado. Contradizem-se?

Algo vela-se. Novos silêncios. Como a tratar da discriminação submersa dos alunos em relação a aluna negra. A Maria Bonita de Lampião teve na turma a sua versão loira. Que influências são essas?

A abordagem da literatura infantil acontece de forma mais tranquila, natural, facilitadora e por isso mesmo abre-se mais ao diálogo, às trocas de percepções e sentimentos. Quais autores caracterizam personagens negros, no enredo e ilustração para crianças?

Ana Maria Machado, em Menina bonita do laço de fita, e Ziraldo, em Menino Marrom, não infuenciam o leitor pela caracterização de ser ou não ser “branca como a neve”, perfil do protagonismo clássico dos contos europeus das fadas.

Assim, a menina de Ana Maria era “linda, linda. Os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, daqueles bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feito fiapos da noite. A pele era escura e lustrosa, que nem o pêlo da pantera negra quando pula na chuva”.

E o menino marrom, de Ziraldo, tinha a “pele cor de chocolate. As bolinhas dos olhos pareciam duas jabuticabas: pretinhas. Os cabelos eram enroladinhos e fofos. Pareciam uma esponja”.

Tatiana Belinky, em seu livro “Diversidade”, faz exuberante e ilustrativa abordagem sobre o assunto em pauta.

Um é feioso. Outro é bonito
Um é certinho. Outro, esquisito
Um é magrelo. Outro é gordinho
Um é castanho. Outro é ruivinho
Um é tranqüilo. Outro é nervoso
Um é birrento. Outro dengoso
Um é ligeiro, outro é mais lento
Um é branquelo. Outro sardento
Um é preguiçoso. Outro, animado
Um é falante. Outro é calado
Um é molenga. Outro forçudo
Um é gaiato. Outro é sisudo
Um é moroso. Outro esperto
Um é fechado. Outro é aberto
Um carrancudo. Outro, tristonho
Um divertido. Outro, enfadonho
Um é enfezado. Outro é pacato
Um é briguento. Outro é cordato
De pele clara. De pele escura
Um, fala branda. O outro, dura
Olho redondo. Olho puxado
Nariz pontudo. Ou arrebitado
Cabelo crespo. Cabelo liso
Dente de leite. Dente de siso
Um é menino. Outro é menina
(Pode ser grande ou pequenina)
Um é bem jovem. Outro, de idade
Nada é defeito. Nem qualidade
Tudo é humano. Bem diferente
Assim, assado todos são gente
Cada um na sua. E não faz mal
Di-ver-si-da-de. É que é legal
Vamos, venhamos. Isto é um fato:
Tudo igualzinho. Ai, como é chato
!


Boas intervenções, influências e releituras podem ajudar alunos e alunas a redescobrirem diferentes ângulos e cânones, bem estranho às exaustivas lições de morais, por vezes ineficientes no contexto das relações e, principalmente, entre pares ou diversos.

Quanta riqueza tem o trabalho pedagógico e tantas descobertas fazem juntos professoras, professores, alunos, alunas, turmas e equipes, singular e plural. Somos todos aprendentes na dinâmica escolar e mediante nossa prática reflexiva.
Imagem 1: http://cultura.updateordie.com/files/2009/03/belinky.jpg
Imagem 2: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj8pz2ZYnALRqEWXGfr24hyphenhyphenQ1sbZyt1y3tfyisQxgv9KC09VaL6-eYcT0WK4GyzR_F18RyzE3_-qSPpi-UofZ5bYDirEQNrRaQ_sDEfobz9iBfdiv8Mt5ppE9bKM_bJIIe23eONIKAZwLY/s400/MB5.jpg

7 comentários:

  1. Oi, Maria!

    Muito bom seu texto!
    Gosto muito desse processo de aprender sobre um determinado assunto, através de grupos de estudo, pesquisa, enfim, o aluno construindo o conhecimento. Seria muito bom se esse tipo de atividade fosse mais frequente nas escolas.
    Quanto à questão do preconceito, a família e a escola são os primeiros grupos sociais que uma criança participa. É responsabilidade dos adultos ensinar aos pequenos que o ser humano é diverso em vários aspectos e, acima de tudo, ensinar o respeito e a convivência harmônica entre eles. Quanto mais cedo melhor.

    Um forte abraço!

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  2. Olá Max,
    Isso é possível com a incorporação da "pedagogia de projetos" na escola. Melhor ainda quando há parcerias entre docentes de forma a integralizar o conteúdo e possibilitar uma, ou melhor, diferentes interpretações discentes e discursos integradores do contexto a partir desse re-olhar do lugar que ocupam...
    Quanto ao que refere acerca dos adultos como educadores das crianças, na realidade percebemos que os adultos educadores precisam ser reeducados, choram por colo e daí precisamos mediar em nossas reuniões pedagógicas com a família e quando necessário na realização de atendimentos individuais.
    A escola aprende em suas intervenções a estar mais próxima dos alunos e suas realidades a fim de desenvolver boas mediações, pontuais ou coletivas, não é mesmo?
    Adorei a visita! Outro forte abraço!

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  3. Oi,
    eu de novo...rs
    Maria, quando estava fazendo estágio minha escola realizava projetos por bimestre. Cada bimestre um assunto e todos relacionados com a nossa cidade. Por exemplo, os alunos fizeram uma pesquisa sobre os dois clubes de futebol que temos aqui. Orientava-os de forma a interagir com outras disciplinas como História e Geografia, localizando os clubes no espaço físico e no tempo. Foi um trabalho muito prazeroso de ser realizado. Os alunos montaram dois livros, um para cada clube.
    Quanto aos adultos, concordo plenamente contigo: precisam ser reeducados.
    Gosto muito dos seus textos, mas nem sempre tenho tempo de comentá-los. Entretanto, levo sempre algum aprendizado comigo.

    Abraços

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  4. Max,
    E os professores de História e Geografia interagiram contigo? É preciso haver essa reciprocidade. Como a corporeidade se incorpora na perspectiva das outras ciências? Como os professores perceberam essa relação? Ivani Fazenda nos diz que um dos primeiros passos para a intrdisciplinaridade é cada um de nós "perceber-se interdisciplinar", porém, segundo Japiassú, há muita patologia no saber. Há muita fragmentação. O saber é inteiro. Qual é a interpretação que o aluno tem quando realiza aula passeio? Vê apenas com um óculos ou consegue integralizar todas as disciplinas sem ser necessário o professor conduzir o olhar? Os relatórios precisam contemplar a inteireza desse olhar, assim como a redação, sem fragmentos. Complexo, não? Mas, Morin também nos ensinar a ver e a unir todo o conhecimento separado, pois, complexus significa o que foi tecido junto. O que os alunos falam e escrevem? Se tiver junto todo o conhecimento adquirido é porque o olhar interdisciplinar faz parte do currículo. É espontâneo? Melhor ainda.

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  5. Maria,
    Trocávamos umas figurinhas, sim.
    Entretanto, acho que pesou um pouco o fato de ser o primeiro projeto nesse sentido e não foi tão proveitoso como poderia ter sido, mas foi um passo importante. Eu mesmo, acabei pesquisando mais sobre a história da minha cidade e sobre alguns aspectos geográficos para poder responder a dúvidas e perguntas durante conversas com os alunos. Esses professores ajudavam também, complementando as informações que eu transmitia.
    Muito de corporeidade se vê nas ciências biológicas, o desenvolvimento do ser humano, a relação que tem com o ambiente, etc. Porém, no caso específico desse trabalho não houve muita relação, já que era voltado para a história dos clubes de futebol.
    Outra forma que encontrei de interagir com as outras disciplinas foi através de uma espécie de jogo (competitivo/cooperativo). As equipes tinham que completar um determinado trajeto e, para isso, precisavam responder questões de Português, Matemática, etc. Toda vez que acertavam recebiam a localização da próxima pista, onde haveria outra questão a ser respondida. Cada professor formulava as questões que estavam no conteúdo daquele bimestre. Foi apenas uma ideia que tive para mostrar aos alunos que o saber das outras disciplinas é muito importante e que "jogar bola" não é tudo, visto que a maioria não colaborava em sala de aula.

    Um forte abraço!

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  6. Max,
    Gosto de trocar sempre com os colegas. Percebo mais um trabalho interdisciplinar a partir de sua relação com o mundo e vontade de integrar o conhecimento tecendo-o a partir da Educação Física. É o que a gente chama de desenvolvimento interdisciplinar intrapessoal, uma atitude do professor em buscar a transposição didática e aprender com outras áreas. Importante caminho!
    O ser humano é reducionista por natureza e é preciso combater a simplificação, a fragmentação e o esfacelamento do conhecimento, tendência de nossa formação na graduação, pois, aprendemos a separar, compartimentar, isolar para especificar e especializar, e olhamos tudo a partir dos óculos de nossa área. É preciso situar toda verdade parcial no conjunto de que ela faz parte. O olhar interpetativo do aluno diante de uma paisagem/um problema, por exemplo, deve unir todo conhecimento separado. É a concepção de currículo e da inteireza do ser.
    Daí corremos para entender o conceito de transdisciplinaridade, que é mais "louco" ainda, pois, situa-se ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina, cuja finalidade é a compreensão do mundo presente. Cujo imperativo é a "unidade de conhecimento". Temos, no Brasil, como grande referência "Ubiratan D'Ambrósio", ou ainda Leonardo Boff e o querido Hugo Assmann.
    Legal esta conversa!

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  7. Maria,
    concordo plenamente contigo!
    Realmente, cabe aqui o pensamento que diz "que um especialista é alguém que sabe cada vez mais sobre menos coisas" e o pior é que um percentual elevado de professores não entende a importância desse conceito e não busca ampliar o seu conhecimento em outras áreas que integram o currículo escolar.
    Também estou achando muito legal o nosso papo...tá virando "msn". Brincadeiras à parte, é sempre muito interessante visitar esse espaço de aprendências.

    Abraços

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