domingo, 8 de agosto de 2010

Aprendências da didática: a práxis em ação

O que venho percebendo nas leituras de relatórios e projetos pedagógicos, em pleno protagonismo escolar, é a preferência pelo aspecto condutor do trabalho que garanta o caminho da lógica, das tendências do pensar do professor, na perspectiva do ensino, ou seja, o projeto é pensado pelo professor para o alunado.

O caminho autopoiético, das subjetividades e fruição, não é um caminho incerto. Muitas vezes a recondução do processo pedagógico nos faz entender melhor as texturas das aprendizagens e a complexidade das não-aprendizagens. Considerando a lógica da vida sabemos que, em processo de inversão, a dor, o sofrimento, ou o fracasso na escola, nos reconduzem a buscar outros sentidos e melhores alternativas, diante do automatismo de toda rotina vivenciada, escolhida, preferida. O sofrimento é criador de sentidos e é, portanto, ativo. Não há sofrimento que seja apenas físico. Sabemos que os sujeitos se constroem em sua história de vida. A consciência muitas vezes vem na contramão. A educação é práxis e a linguagem - produção e expressão de sujeitos humanos imersos na coletividade.

- Quem somos? O que queremos?
- Qual consciência tenho do meu fazer? Como procuro conhecer o que faço e por quê?

Na escola, o conhecimento é vivenciado e produzido na relação ensino-aprendizagem, e se reprocessa o que se produz academicamente, porém, a pressa pode valorizar o modismo e chavões pedagógicos, que se tornam presentes nos discursos, infelizmente, a práxis pode ser outra da porta da sala para dentro, com pouca base teórica e reflexão práxica, a cristalizar, por vezes, equívocos metodológicos e provocar/continuar com as crises na escola, cada vez mais intensificadas quanto distante estiver da necessária autocrítica do professor pesquisador, primeiro estágio da formação continuada. O projeto pedagógico do professor pesquisador é feito com o alunado, e não mais para ele. Protagonismos reúnem e concertam (com c), em média, 50% do ensino e 50% da aprendizagem. Mas, sabemos que o desafio da dialética é estudar o todo na parte, sem decepá-la desse todo (Frigotto, 1994). O desafio do professor é compreender a parte nas ligações com a totalidade, repensado as arbitrariedades sobre a realidade. É preciso se reorganizar.

Por que o aluno não aprende? As dificuldades de aprendizagem são eventuais. É uma questão a observar e conhecer em cada realidade e no contexto das interações. A polifonia das muitas vozes se opõe ao discurso monológico dos "dominantes". Requer observar melhor os determinantes históricos que perfazem e a dimensão subjetiva da objetividade e a dimensão objetiva da subjetividade.

Isto quer dizer que precisamos investigar melhor os determinantes históricos que perfazem e norteiam a objetividade e a subjetividade na percepção individual, por exemplo, acerca do fenômeno que entrelaça o fracasso escolar a engrossar o caldo da fome compulsória ou aumentar a fila do cobertor nas geadas -, e como ambas contribuem para a compreensão do fenômeno curricular.

Algumas disciplinas valorizam a dimensão subjetiva e outras valorizam a dimensão objetiva. Mas, percebemos aos poucos que há objetividade na subjetividade e subjetividade na objetividade em busca da inteireza no processo formativo do alunado e sua cidadania.

Como se integram as duas dimensões (o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista) em cada disciplina e como as interfaces acontecem entre áreas e campos distintos? Ocorre a necessidade de conceber na práxis o conceito de interdisciplinaridade. Segundo Fazenda (1996), o primeiro passo em direção a um fazer interdisciplinar e um pensar interdisciplinar, é nos perceber interdisciplinar. Para isso é preciso considerar os níveis de realidade habitados pelos professores (Nicolescu, 2000) e alunos, é um trabalho incansável da escuta, da sensibilidade, do olhar atento. Para Fazenda (2003), a escuta sensível é indispensável no processo de compreensão da interdisciplinaridade. A humildade – outra atitude interdisciplinar – possibilita um olhar de totalidade, faz com que o pesquisador, no silêncio, perceba a gama de ambigüidade que o cerca.

Respeitar o que o aluno sabe, faz parte de uma linha do conhecimento a nos exigir novas leituras, para que o planejamento da aula concerte as possibilidades do outro. Cada texto vive em contato com outro texto (o contexto). Tomando como pressuposto, a visão da história que não exclui o particular no processo e contexto das aprendizagens, porque entende que a subjetividade só existe a partir da coletividade e do social, mas, sobretudo, também procura perceber o Outro na totalidade do momento, ou seja, em cada ato, coordenação e operação do pensamento registrado nas atividades escolares, dando abertura ao protagonismo no campo do multiletramento, pela visão que busca conciliar polissemia e unicidade textual através da dialética, capaz sim de tecer diferentes caminhos e redes temáticas, a partir do fio condutor do planejamento articulado às identidades enraizadas nos sujeitos aprendentes, a vincular ainda os fios do conhecimento - construído pelos múltiplos sujeitos ao longo da história.

A didática não pode ser vista como “arte de ensinar”, com “receitas” de como ensinar e agir em sala de aula, nem como técnica que dinamiza o ensino e resolve problemas de disciplina e desinteresse do aluno no cotidiano escolar. A didática, para Frigotto (1996), no plano material histórico-cultural, é um desafio teórico e epistemológico, muito mais do que uma questão de meios, pois a didática deve ser efetivamente pensada e encaminhada a fim de evitar questões bloqueadoras que possam ocorrer nos processos de conhecimentos previamente construídos pelo aluno em suas interações e aprendizagens.

Por isso penso que mais do que epistemológica, a didática é uma questão cultural. A linguagem pedagógica penetra no mundo da cultura e no interior das relações sociais existentes. Professores e alunos, como protagonistas da prática educativa, segundo Kramer (1993), “estão imersos na cultura, são autores, produtores e criadores de linguagem. Atores vivos de um conhecimento vivo e nem sempre científico ou sacralizado como tal”. Assim as certezas transitam em meio também as incertezas.

O aluno não pode fazer apenas parte da platéia que ouve informações “escolares - acadêmicas”, verificáveis, úteis, funcionais e instrumentais. Suas vozes precisam ser ouvidas e as narrativas precisam fazer parte do processo das aprendizagens, a narração é produto da voz e de tudo o que é aprendido com o Outro, na vida social, por isso a necessidade da escuta como parte de construção ou recolocação da didática. Qual tem sido a prática social comum de alunos e professores na escola? E fora dela?

Segundo Bakhtin (2003, p.400), o sujeito como tal só pode ser percebido e estudado como “produtor de textos”, não pode tornar-se mudo, mas, como “sujeito que tem voz”, nunca como coisa ou objeto, o conhecimento dele nesse sentido só pode ser dialógico. Um projeto pedagógico deve, sobretudo, aprender a desfazer os nós, incluindo o caminho autopoiético, as margens das incertezas, pois, segundo Maturana e Varela sugerem, temos de aprender a seguir na trilha mediana, em busca da regularidade, ou seja, “a caminhar sobre o fio da navalha, evitando os extremos representacional (ou objetivista) e solipsista (ou idealista)” (2005, p.263), até porque a outra parte, os outros 50%, é composta pelo conjunto das aprendizagens efetivadas nas interações e movimentos pedagógicos naturais e culturais de uma turma de alunos. Nem sempre a interpretação pedagógica corresponde exatamente às possibilidades compreensivas até então trilhadas.

Como explicar a semente de feijão que, contrariamente, germinou no solo arenoso, como um cacto, e talvez entre pedras, e não aquela cultivada em terra bem cuidada, diante de um grupo de alunos? Arrancar a planta teimosa ou quem sabe transplantar de vaso, de explicação mais plausível...

Não há um único caminho para se chegar a uma resposta, diante da realidade das não-aprendizagens, e construir o caminho metodológico é parte fundamental no processo de elaboração do conhecimento. A didática é uma teoria pedagógica preocupada em estudar e ensinar como transformar o saber escolar em conhecimento historicamente sistematizado pelo sujeito em seu processo de construção do conhecimento. Há várias respostas possíveis para o mesmo problema.

- O que determina a escolha de um conteúdo e do caminho pedagógico a percorrer no ensino?

Sobre concepções que norteiam a práxis e visam, sobretudo, buscar as formas mais adequadas de condução da atenção e o protagonismo do aluno para os aspectos pensados, Leontiev (1981, p.203) nos ajuda a pensar, pois, para que “um conteúdo seja conscientizador é mister que este ocupe dentro da atividade do sujeito, um lugar estrutural de objetivo direto da ação e deste modo, entre em uma relação correspondente com respeito ao motivo dessa atividade. Este postulado serve tanto para a prática como para a atividade teórica".

Qual é o motivo do ensino que permeia cada didática proposta? A ciência? O programa? O aluno? O contexto? O recurso? O professor como pesquisador de seu próprio fazer pedagógico articulado ao projeto pedagógico da escola, (re)pensa a compatibilidade entre a metodologia escolhida e o motivo pensado, e se esse caminhar potencializa as aprendizagens do alunado, valorizando competências e habilidades mediante o espectro das múltiplas inteligências, no campo dos possíveis e necessários.

Vou seguindo aprendendo nesse caminhar, com coragem suficiente para enfrentar as minhas certezas e abrir mão delas, se for o caso, em nome das novas alfabetizações e mediações que se fazem necessárias no contexto.

"Quando a justa tensão e a harmonia da alma chegam a perder-se, é preciso começar a bailar (...) essa era a receita da medicina" (Vigotski, 2001, p. 311). 

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FAZENDA, Ivani (Org.). Práticas interdisciplinares na escola. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1996.
______. Interdisciplinaridade: qual o sentido? São Paulo: Paulus, 2003. (p. 84).
FRIGOTTO, Gaudêncio. A formação e a profissionalização do educador: novos desafios. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; GENTILI, Pablo (Org.). Escola S.A. quem ganha e quem perde no mercado educacional no neoliberalismo. 2 ed. Brasília, DF: CNTE, 1999.
____. O enfoque da dialética materialista histórica na pesquisa educacional. In: FAZENDA, Ivani. (Org.) Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo, Cortez, 1994.
GENTILI, Pablo. A falsificação do consenso: simulacro e imposição na reforma educacional do neoliberalismo. Petrópolis: Vozes, 1998.
LEONTIEV, Alexei. N. Actividade, conciência, personalidad. Habana: Pueblo y Educación, 1981.
MACHADO, Nilson José. Epistemologia e didática: as concepções de conhecimento e inteligência e a prática docente. São Paulo: Cortez, 1996.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. 5 ed. São Paulo: Palas Athena, 2005.
VIGOTSKI, Lev. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


Imagem 1: http://gizelda-desassossego.blogspot.com
Imagem 2: http://recantodasletras.uol.com.br
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